plural  | desvairada

Scenarium

A Plural surgiu muito antes da Scenarium. Era outra proposta-idéia. O ano era 2012 e eu flertava com a idéia de publicação alternativa… Eu me sentia atraída por cadernos de apontamentos —, onde as páginas funcionam como uma espécie de depoimento do artista…

A primeira edição foi rústica, impressa em formato A4, grampeada nas laterais. Ano após ano… a idéia-proposta se renovava, se reinventava… se construía e descontruía… Foi assim ao longo de 09 deliciosos anos.

Arquitetavámos a cada nova edição… um coletivo de experimentações.

A Plural foi desde o inicio uma publicação independente que passou a ser um projeto Scenarium em 2015… sendo um caminho para discutir a literatura contemporânea e seus muitos nomes…

Falamos de tudo… provocamos incêndios e atiçamos labaredas. Chacoalhamos galhos depois da chuva. Pisamos poças no meio da rua. Chafurdamos na lama…

Plural Desvairada será composta por um pitoresco conjunto de cadernos de: poesias, contos, crônicas e correspondência…

Queremos falar de temas proibidos, indigestos e necessários…

A idéia é fazer barulho no papel...

Plural  | Solitude

Gabriela Lages Veloso

Nas folhas caídas, ao vento,
nos sons do silêncio,
na mutabilidade dos dias,
perceberás a ti mesmo.

Nas tempestades em alto-mar,
no barulho desordenado da cidade,
na solitude da multidão,
aí, sim, encontrarás o teu eu.

Perceber e encontrar a si mesmo
é um dom. Mas, enxergar o outro
como o seu próprio reflexo é
compreender o enigma da vida.

Plural  | Um dia comum

Nirlei Maria Oliveira

olho para janela e a chuva ainda persiste 
as prateleiras continuam com o seu tom cinza insosso
os livros permanecem no mesmo lugar de sempre

parecem me olhar julgar e condenar
sinto a revolta dos autores 

muitos indignados com seus poucos leitores
ou nenhum leitor ávido

outros não se conformam com as classificações
limitantes e invisíveis para o leitor

vários empoeirados e esquecidos em uma estante bem no fundo
quase ninguém vai até lá

poucos nem tão poucos assim 
perdidos para sempre

alguns felizes, mas em silêncio inveja roxa ronda as estantes

não tenho respostas para tantas questões dos autores
afinal, hoje é sexta!
melhor fechar a porta da biblioteca e ir embora

(sonho mesmo é com a Biblioteca de Babel de J.L.Borges)

Plural  | Desejos

Obdulio Nuñes Ortega

acordei om o desejo explicito de preservar
a lembrança de meu último sonho
e como acontece quase sempre
me surpreendo com a minha presença física
diante do espelho que não me revela
não foi esse que sonhei…
quem é esse sujeito que me perdeu?
mergulhei o rosto na água fria espalmada
ventos do centro seco do mundo
o desumedece  em sorriso crispado
inicio mais um dia em que a vivência sonhada
se perderá pouco a pouco
até restar a sensação de que não vivi
permanente espectro de que ainda não nasci
morte a caminho cada vez mais próxima
curiosidade que aumentada de como será
já se não é em vida porque morremos a  cada a dia
quase um anticlímax uma sombra
o momento abrupto do desenlace
traz tanto encanto dramático que o imagino
tantas vezes sendo comum feito um passarinho
que para de voar fecha os olhos e cai de lado
saio em corrente de motor à diesel
no movimento incessante do trânsito
sou carregado enclausurado em grupo de desconhecidos
competindo todos pelo espaço asfáltico
carros em profusão como se houvesse uma fonte
inesgotável de  potenciais assassinos em série
fantasio que teremos o mesmo destino imediato
a mesma curva mal feita
o atropelo dos instantes impermeáveis
ao cósmico sentido de estarmos seres imortais
e desejo de ser mais
carrego em meu bolso temas
frases escritos sentenças poemas
proseio com o meu imaginário que bebe álcool
ou outras drogas só assim para entender
de onde vem tanta ilusão
desmedida assim como o caminho
que percorro sem rumo em busca de desejos
sinónimo de esperança…
o que sonhei mesmo?

Plural  | Sobre Sobra

Manoel Gonçalves
Manogon


Sinto-me
E contemplo a vastidão
Sento-me
E reparo a devastação
Sou floresta de um homem só
Tronco decepado
De promissora plantação
Pensamento solitário
Frio, cinzento, sem folhagem
Senhor minúsculo do tempo
Sentado sobre terra
Agora plana
Sem picos e desfiladeiros
Sem planícies e planaltos
Sem poros e reentrâncias
Só bobagem
Sou peça solta
Sem pino, parafuso
Graxa e funcionalidade
Apenas engrenagem
Largada e esquecida
Sento-me sobre minha obra
Sinto-me apenas a sobra
Penso, penso
E nesse vazio
Será que existo?

Plural A cidade da minha escrita (2)

June Camargo

Dentro do peito habita cada uma das minhas palavras. Minhas e de muitas mães. Seus filhos carregam não como um adjetivo, mas um jeito todo seu de ser, o termo autista. Aos olhos do mundo o diferente, o deficiente.

Aos olhos do mundo a mãe guerreira, uma pessoa muito especial, escolhida por Deus. Nossas palavras secretas apontam em outra direção. Somos tão humanas e cheias de imperfeições e fraquezas como qualquer outra mãe ou pai de um filho neurotípico.

Mas a sociedade cria convenções arbitrárias.
Ou seria um jeito de acolher diferenças
conforme as próprias conveniências?

Bem mais simples e objetivo propagar o mito da mãe heroína do que perguntar como poderia ajudar e estender a mão. Dispor de uma fração do próprio tempo para que ela tenha algum só dela ou uma escuta amiga. Mães desejam transbordar sentimentos, dúvidas e medos em palavras. Sem esperar absolutamente nada em troca. Apenas a chance de escrever no vento perguntas que não têm resposta, ou conflitos legítimos que permanecem silenciados e invisíveis. Eles pesam bem mais do que muitos sacos de  areia. As dores que sobrevêm são resultado não de um cansaço físico que uma boa noite de sono repara. São dores da mente, da alma e do coração. Elas exigem de nós uma frequência fiel ao que chamo de cross-fit interno. É ali que palavras não ditas são processadas com sabedoria para não ferir o outro, a nós mesmas e ainda fortalecer nossos “músculos psíquicos”.

Cada palavra é traz uma amplitude de nuances muito maior do que o sentido denotativo. Enquanto observa as necessidades intrínsecas à condição dos filhos essas mães se submetem a um número de emoções e pensamentos. Raramente tomam plena consciência deles. Desde qual caminho e atitude adotar para favorecer ou evitar determinado comportamento, até se compensa expor sua verdade para um olhar que julga ambos.

É comum escolher ser indiferente. Por fora.
Uma forma de respeito e instinto de autopreservação.

A bem intencionada freira me acolheu à sua maneira. Disse pra eu ter fé e orar mais pois Deus curaria minha filha. Minha escrita precisa ser revisada internamente.

Ou amasso logo a folha e lhe enfio goela abaixo?
Respiro. Conto até doze.

Uma representante do divino bem podia trazer mais luz para o meu caminho! Recorro à conotação. A cidade dos escritos da freira comporta apenas essa verdade.

As palavras dela habitam um cômodo cuja janela contempla apenas um pequeno recorte de toda a paisagem que cerca aquela morada.

Merece respeito porque pertence a ela.
Mas não minha concordância
porque honro a minha própria verdade.

E onde está a verdade? Dentro de mim e de você e merece existir e ser respeitada. A verdade está em cada diferença que encontramos entre nossos filhos que o mundo supõe “ter a mesma coisa”.

A verdade está no fato de nós mães de filhos considerados diferentes buscarmos semelhanças entre eles e encontrarmos tanto em comum sobre nós mesmas.

Plural  | Fluido desapego

Flávia Côrtes

Passado
Solo fértil
a ser reflorestado
Ervas daninhas 
arrancadas
do universo de dentro
abrindo espaço
para o vazio
semeadura
Promessas de árvores 
lançadas à terra
por passarinhos
Raízes a serem cuidadas
para alcançar o céu
Nada cresce por milagre
Sementes precisam 
de tempo-alimento
para transpor a casca
assim como casulos 
não se rompem do nada
Desprender-se
do envelhecido
amortalhado
Ganhar liberdade-adubo
do próprio amor-irrigação

Plural Seja gentil

Margarida Montejano

Num encanto de encontro,
um aceite prazeroso. Um beijo!
Uma gentileza que azeitou o meu tempero,
adoçou o meu café,
deu ponto,
no meu risoto de queijo.
Nota mil!

Puxou a minha cadeira,
abriu, para mim a porta,
mandou flores em dia comum!
Óh vida prazenteira
que me presenteia em campos floridos,
sem pedir retorno algum!

Grata, óh mãe natureza que, seja noite ou seja dia,
me ama com poesia e me adorna, com total gentileza!

Quem dera, óh tempo presente!
Que a vida seja gentil, com esse povo sofrido,
que clama por paz,
Amém!

Plural  | Poesia

Suzana Martins

Teu olhar insolente
aquece, marca e
rasga a minha derme.
Teus lábios sedutores
confunde, entrelaça e
atiça a minha sede.

Sem pudor, entrego-me!

Teu sorriso, deveras perverso,
suplica por um beijo tentador.
Sem reservas, nossos lábios se tocam.
Teu corpo, esta teia perigosa,
aquece as minhas vontades.

Entrego-me a ti!

Face a face.
Beijo a beijo.
Olhos nos olhos.
Desejos. Lascívia.
Sinto o teu toque e
teu calor incendiar
a nudez arrebatadora
da minha pele.

Entrego-me em chamas,
sem nenhum pudor.
Rendo-me ao prazer
vulcânico e sedutor
do teu querer.

Plural  | É preciso estar embriagado

Meu caro Poeta,

Parei em suas linhas ao arrumar as prateleiras no meio dessa tarde, quando seu livro se precipitou ao toque — oferecendo-se para leitura. É abril por aqui… e esse mês não lhe pertence. É de Eliot que o intitulou como ‘o mais cruel dos meses’… um precioso verso, não achas?

Eu não resisti ao teu ‘convite’…
Abandonei a arrumação e fui para a cozinha:
Preparar um café… aceitas?

…‘como o mendigo exibe a sua sordidez’ — toda vez que eu leio “les fleurs du mal” penso em tua Paris… mais humana, menos luz. As pessoas tinham tempo para acenar umas as outras. Era possível dialogar as poucas notícias do mundo. Apreciar os artistas de rua… se oferecer como modelo ao pintor desconhecido, apenas pelo prazer de se deixar ver-retratar e nada mais.

…‘fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça’ — será que foi após a passagem do famoso-arquiteto-urbano por lá… que tudo mudou? Ou será que outros antes dele, agiram sem serem vistos?

Remendaram tua Paris… e a fizeram Luz.

Pouco humana — uma estranha, que eu conheci sem, contudo, reconhecer-te naquele mal elaborado traço, onde multidões de ninguém se orientam. Eu andei com o teu livro em mãos por várias ruas… museus, galerias e nada.

E vejo o mesmo acontecer na cidade em que vivo os meus dias contemporâneos. Seria uma inspiração tardia  ou seriam os tais homens a agir nas sombras?

Eu não lhe disse… mas estamos a bordo do século XXI e lhe confesso que é embaraçosa tal afirmação. Tudo por aqui se repete, como se a vida, o mundo andasse em círculos. A cidade luz de Haussmann sobreviveu com suas luzes… mas querem arrancar dela o seu bem mais precioso… a sua essência: a liberdade. Querem calar os pincéis. Quebrar os grafites. Rasgar cartazes. Mutilar telas-pessoas.

… ‘a tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez’ — proibir voltou a ser Palavra de Ordem. Tudo orquestrado por Senhores que erguem a voz para defender a tal: ‘família tradicional’… aquela que zela pela moral, bons costumes e que censurou a sua poesia. Os exemplares foram todos recolhidos. E você foi apontado e condenado por ofender a moral pública. Um subversivo.

…‘em meio às hienas, às serpentes, aos chacais’ — e esses senhores, meu caro poeta… estão a vencer. Uma nova forma de censura já se faz notar. Voltaire não tem mais espaço entre nós. A filosofia do homem está fora de moda. Ainda é possível acreditar na estabilidade das essências e na desordem da história, mas não do mesmo modo que Voltaire.

Desapareceu o teatro da perseguição, meu caro. Mas não a perseguição em si. O auto da fé virou instrumento nas mãos de uns e outros; discretamente ignorado pelos homens de sempre.

Fala-se no povo e eu recordo os romanos.

Uma passagem bíblica que condena um inocente e liberta o culpado. Repete-se até as falsas profecias, meu caro.

Outro dia, em uma conversa, a pessoa com quem tentava dialogar, defendeu-se… usando o discurso conhecido de ser a favor da educação.

Uma pessoa branca, num mundo solúvel a defender a educação do povo.
Respirei fundo e pensei em Voltaire.
Onde estão seus inimigos, agora?

Eu espio pessoas do alto de seus discursos inflamados, tão certos e definitivos… e não digo palavra. E sei que não sou a única a sentir cansaço. Essa gente só quer dialogar com iguais, tão acostumadas as mesmas falas — repetidas incansavelmente — que estão.

É mais agradável quanto concordam
com a gente ou dizem o que vai
em nossa mente, alegam.

Eu prefiro ouvir um discurso contrário ao meu, mas banhado em lucidez. Como uma conversa bêbada é boa de se ouvir… Por isso, você preferia as horas no gargalo.

Como não desfruto do mesmo gosto, opto por sorrir e acenar… Sair de cena, fazer silêncio — como recomenda uma poeta contemporânea ou como faziam as moças vitorianas.

Imagino sua gargalhada!

Mas é cansativo existir nesse tempo, lhe asseguro… embora — insistente —, ainda percorra os arredores de todos os corpos-mambembes, convertidos em marionetes a marchar rumo a esquerda-direita.

Sinto falta da ironia de Voltaire, meu caro e do seu vasto material linguístico. Combinação perfeita entre tempos e espaços. Você foi moderno e contestou a burguesia e suas coisas de ontem. Acabou censurado por esse agente que infecta a sua Paris com prédios charmosos e passadouros banhados de sol. Tudo muito elegante, sem a presença de pessoas de verdade. Essas têm horas marcadas para chegar e sair. Que triste ver o seu flâneur limitado ao estrangeiro e não mais aos parisienses, decapitados.

Tanto faz… mais café?
…‘é o diabo que nos move e até nos manuseia!’.

Lunna Guedes

Nasci em Gênova, no ano de 1981… o mês era novembro e vim ao mundo sob a regência de sagitário, numa casa com três números, cuja soma sempre me intrigou. Aprendi a ler e a escrever na mesa da cozinha. Fui para a escola aos seis anos e não me saí muito bem. Mas fui até o fim e conclui todos os estudos… atualmente escrevo e bebo café, não necessariamente nessa ordem…

Plural  | Meu lugar no mundo

Bambina,

Enquanto te respondo ouço I’am not the Only one, na voz de um cantor coreano e revisito meu passado. Lua de papel fez-faz isso comigo e agora os três livros que compõem a história me observam no canto da mesa — ou eu a eles — e penso na sua missiva e nos personagens que você cita nela. Você sabe do meu carinho por Alexandra e como sua personagem me tocou. Não sei se foi empatia ou por que em algum momento me comparei com ela.

Eu fui Alex. Embora soubesse exatamente o que estava sentindo e encarasse isso de forma natural — até certo ponto — me vi envolvida por uma Raíssa.

Ana era esse trovão azul que você sentiu em Raíssa e era imensa, cobria qualquer lugar que estivesse com sua presença. Ana era real e era de Marte e eu? Ah, eu era a menina careta criada na roça, com tantas coisas embutidas dentro de mim, criada nos preceitos da igreja católica. Só por isso você pode imaginar que tudo fora dos “padrões” convencionais era considerado pecado por minha família.

A palavra pecado era pronunciada tantas vezes em casa que até alguns pensamentos me levava a rezar as 10 ave-marias — que o padre que visitava a fazenda duas vezes por mês nos impunha — antes mesmo de confessá-los e até isso, era considerado pecado.

Sempre relutei com os rótulos que designa a opção sexual de alguém. Lembro-me de que algumas vezes, por estar sempre de macacão era chamada de ‘sapatão’ pelos colegas de escola, já no ensino médio. Na época, nem entendia direito a palavra. Eu havia chegado recentemente da roça, criada distante de um grande centro e não sabia grandes coisas sobre o que acontecia fora das cercas da fazenda do meu pai. Mas sempre achei que o amor não precisava de rótulos ou jargões. Nem de sexo determinado… Mas, não ousava falar.

Talvez, por isso, fui compreensiva com Alex, no início. Eu era igual. Podada, medrosa e sem coragem. Talvez usasse a educação de uma família tradicional goiana para justificar o medo quando me vi encantada com Ana.

Mas, de repente, minha voz ganhou coragem e foi como se pulasse de um trapézio e dissesse: que se dane o mundo e os convencionais. Antes disso, havia engravidado do “primeiro namorado” na cidade grande e ele não reconheceu o filho, que morreu ao nascer. Me transformei em tantos personagens dos livros que lia que me perdia nos sentimentos.

E foi aí que o universo me ligou à Ana. Tanto para mim, quanto para ela era a primeira vez desse amor feminino que nos unia. Ela era mais corajosa do que eu e usávamos a poesia para nos fortalecer. Mas, ainda assim, ela era demais para mim. Eu só me sentia segura dentro de quatro paredes e me refugiava no medo de que minha família descobrisse o que eu era. Mas, o que eu era? A filha que ficou responsável pelos irmãos mais novos depois que a mãe morreu e que as irmãs mais velhas colocaram para fora de casa quando descobriram que eu amava outra mulher citando que eu estragaria meu futuro?

A mulher que sabia o que queria, sem perder a responsabilidade que me foi exposta tão cedo?

Para elas, eu era a rebeldia da adolescência em pessoa e para mim, eu era a liberdade que pensava em apenas amar. Sem rótulos ou culpa. Queria ser apenas a mulher que amava. Não a bissexual, a sapatona ou outras linguagens de gêneros que surgiram depois, porque para mim, não era o gênero que me importava. Mas o que eu estava sentindo.

Embora já tivesse tido namoros com rapazes e tivesse até engravidado de um, naquele momento, o amor me movia em outra direção. Ana. De Marte.

Hoje, parece uma história de ficção e Ana era tanto que o nosso lugar ficou pequeno e ela ganhou asas. Viajou para o exterior e eu fiquei só.

O envolver com outra mulher foi considerado por minha família como coisa de adolescente. Ana era a ‘culpada’ por se aproveitar de mim e mesmo assumindo tudo fui ignorada. Acho que sou até hoje.

Então, quando li Alex nas suas palavras eu quis abraçá-la. Até certo ponto eu a entedia… Não é fácil quebrar algumas barreiras. É preciso coragem e talvez, Alex não tenha conhecido alguém para ser exemplo.

Mas, quando Anne na sequência da sua história, vi ali meu reflexo mais puro… eu respirei várias vezes ao ler sobre Anne. Não havia como não me ligar a ela. A Alex era “meu passado” rabiscado em gestos tímidos e palavras secretas. Visão de uma cidade grande que não me cabia, mesmo em alguns momentos me sentindo tão pequena, sem encaixe no mundo.

Anne, possuindo o olho das certezas era eu descobrindo que podia falar abertamente para o homem ao meu lado e que eu escolhi para ser meu companheiro e ele entendia e era cúmplice da história que se desenhava para mim, ouvi dele que eu não precisava de definição nem de desculpas para viver o que queria.

Talvez, faltou apenas à Anne — diferente de mim — o marido que a escutasse e aprendesse a dividir os sentimentos. Ele me fez grande e maior do que a cidade e seu povo que estranhava tudo. Ele segurou minha mão e me seguiu quando Ana voltou.

Em muitos momentos, também me senti como Anne minguando, daí veio um sol que brilha quando a lua em seu estado minguante ainda se prepara para se esconder e comecei a ser dona de mim. Me reinventei e vivi o meu amor de livro. Um amor que conto em Colcha de Retalhos. Sem rótulos, sem pressão, sem denominação. Apenas amor.

Quando você cita sobre os elementos que as unia eu percebo que é o mesmo elemento que me ligou a elas e à minha história.

Acho que há muitas Alexandras, Raissas e Annes por aí. Muitas, escondidas, como eu fui por um tempo. E acho que a ficção me colocou dentro do universo pleno de ser quem eu sou sem meias medidas. Acho também que me fiz pertencer no mundo sem magoar ninguém.

Hoje, Ana se foi e sou grata a ela por tudo que vivi. Ainda vivo inquieta dentro das palavras dela e agora sei a qual universo eu pertenço...

O meu…

Mariana Gouveia

É autora do romance Colha de Retalhos

Plural | De olhos bem abertos

A você, que me lê…

O tempo está seco: poeira e folhas se espalham pelas ruas da cidade. Típico mês de agosto. Como é prazeroso ver as árvores trocando suas “roupa-gens”. Parece ritual de preparo para as floradas de setembro. Aprecio demais ver essas mudanças na natureza. Penso na transitoriedade e na urgência do aprendizado das pequenas alegrias do cotidiano.

Estou organizando minha biblioteca pessoal — coisa que raramente faço. Isso depõe contra a minha profissão. Mas um pouco de caos nas estantes colocam diferentes autores para um diálogo por vezes insano e divertido. Atrevidamente, selecionei três livros para lhe sugerir a leitura. Mas a indecisão me consome: qual personagem irá gostar? Uma mulher com insônia e que a noite vive outra vida? Uma idosa que desbrava o mundo ou um matador de aluguel?

Depois de muito pensar, decidi por algo que me atravessa fortemente. Falar sobre mulheres, seus desafios e conquistas, assunto que não se esgota nos livros, mas transborda em nossas vidas diariamente. Sono e silêncio, despertar e desejos de uma mulher que está dezessete dias sem dormir são motes para este conto do Haruki Murakami. Uma metáfora sobre mulheres esmagadas pela rotina e o embotamento dos desejos, mas que um dia acordam e vivem suas vidas de outras maneiras. 

A personagem é uma mulher comum, sem nome.

Poderia ser qualquer uma de nós. Dona de casa e mãe, vive para a casa, filho e marido, repete diariamente a mesma rotina, sem refletir sobre sua vida, projetos e sonhos.

Neste ponto, sofri muito com a descrição e a repetição das rotinas da personagem. Com a falta de tempo para si. Sua dificuldade de pertencimento e o embotamento dos desejos. O absurdo da rotina bate na nossa cara com força e traz a percepção do quanto subtrai alegrias e desejos em nossas vidas, nos alienando dos problemas, onde tudo parece caminhar bem, se repetimos continuamente.

Com o passar dos dias e sem dormir, a mulher se percebe disposta fisicamente, viva e com energia. Manter-se acordada lhe traz possibilidades. As madrugadas são suas. Ela começa a viver uma vida dupla. Pela manhã repete a rotina e nas madrugadas inicia uma jornada de autoconhecimento. Reflete sobre sua vida, o casamento, o filho, coisas que ficaram pelo caminho e lhe traziam alegrias. Começa a se olhar e a repensar suas escolhas “não pode mais ficar com os olhos fechados para a sua vida — acordou para o seu mundo”.

Ela retoma a leitura de Anna Karenina. Percebe-se mulher diante do espelho. Volta a comer chocolate. Delicia-se em uma banheira. Bebe conhaque. Faz longos passeios noturnos de carro e tudo isso com muita paixão e enorme entusiasmo. Ela libertou-se da necessidade do sono.

Gostaria muito de lhe contar o desfecho, mas de pouco adianta. Murakami é previsível em vários aspectos. Você terá de refletir muito sobre os elementos simbólicos contidos neste livro. Desde a escolha do livro Anna Karenina, as ilustrações impactantes da artista alemã Kat Menschik. Creio que, no fim, terá mais perguntas do que respostas.

Não sei se já lhe disse, mas eu tenho por hábito, manter na minha estante apenas livros que me tocam, e este é um deles: edição belíssima, capa dura, impressão em papel grosso envernizado, tinta especial e as maravilhosas ilustrações.

Nirlei Maria Oliveira
Livro: Murakami, Haruki. Sono. Rio de Janeiro:
Cartas para abril

Nirlei Maria Oliveira

é Poeta e Bibliotecária com mestrado em Ciência da Informação, nasceu em  Formiga MG, e reside em Campinas, SP. Trabalha no IFSP, Campus de Hortolândia. Atua com ações e projetos de estímulo à leitura. Organizadora da coletânea Quarentena Poética (2020). 

É autora do livro de poesias Palavr(Ar)

Plural  | Sobre as aves noturnas

Evan,

Ficamos de conversar sobre Nighthawks, de Hopper… depois que me passou a sua impressão — o quanto você prefere senti-la, sem explicá-la.

Foi o que aconteceu comigo — uma fluição-fruição de sensações, apesar da artificialidade das paisagens e das poucas personagens. Há quadros em que há menos ainda, muitas vezes apenas uma, outras, nenhuma, que não suspeitam que estejam sendo observados, para o nosso prazer de voyaers.

Depois de sentir-me inebriado por olhar as telas de Hopper sem fazer elocubrações, comecei a especular sobre as figuras humanas que se interpõem nas miragens urbanas, rurais e marinhas. Comecei a criar histórias inspiradas pelos enredos aparentemente estanques.

A paralisia de feições e o que até o que poderia estar em movimento. É como se cessassem e dormissem na eternidade por obra de feitiçaria digna de conto de fadas. Não fosse o realismo explícito de seres autômatos por efeito das circunstâncias condicionantes pelo Sistema.

Em Nighthaws, estão recolhidas à gaiola iluminada. Pássaros empoleirados-solitários, no mesmo espaço, alcançados pelos olhares (que não se cruzam) uns dos outros. O entorno vazio de gentes, veículos e sensações, inspira um sentimento de isolamento do mundo que acabara pouco tempo antes. Alienígenas atacaram o Porto Pérola e todos sentiam que a guerra os havia alcançado, finalmente.

Os que estavam presentes, viviam os últimos instantes do mundo antigo. Não mais se consumiriam em suas rotinas. E a proporção numérica das personagens num local como aquele mudaria de quadro e passaria ser o inverso. E o único homem em cena seria um velho — d’alma. Capaz que desse as costas para o exterior por viver intensamente os dissabores de caminhar noites adentro em busca de sentido.

O casal eu imagino se sentir aliviado por não precisar inventar desculpas para se separar. Eventualmente os seus corpos terão as últimas noites de sexo juntos — mecanicamente. O homem alegará que se alistará e se for convocado, fugirá como o diabo da cruz. Passou um tempo na prisão, não permitirá que isso voltasse a acontecer. Conheceu outra dançarina no mesmo lugar onde em que conhecera a sua companheira. Não cometeria o mesmo erro de retirá-la da função. A sua nova aquisição continuará a trabalhar e lhe propiciará o bem-estar que merece. E a nova talvez até gostasse de apanhar como gosta de bater.

A mulher estava cansada de levar bordoadas. No começo, achava que fosse por ciúme. Gostava da emoção de estar ao lado de alguém “perigoso”. A cada caso que se envolvia percebia que eram homens como o seu pai, que igualmente batia na mãe em dias alternados, como se quisesse pegá-la desprevenida. Quando tudo parecia estar bem, o homem que foi seu primeiro, inventava uma desculpa para atacá-la. Quando a deflorou, passou a se sentir como se fosse mais uma amante de seu pai. Até que certo dia, uma faca de cozinha resolveu a situação. A sua mãe assumiu a culpa. Saber que a menina fora invadida por aquele monstro só não era pior porque ela não era sua filha de sangue.

Hopper colocou personagens marginais no centro da “ação”, numa cidade que é outra personagem, com aquela impressionante luz fantasmagórica que, para mim, era a sua marca registrada. Seu olhar de fotógrafo criou um realismo ambíguo que me seduziu. Eu o conheci pela Internet.

Ou, mais certamente, presenciara a sua visão de mundo em filmes, como Blade Runner ou nos filmes noirs que fizeram mais ricas as minhas noites de pássaro noturno preso a mim. As paisagens inóspitas para alguns, surgiam como amigáveis. Lembra como você achou estranho que ficasse horas preso numa mesma tela? Sorrio quando, por ter feito justamente o contrário, chamei a atenção de uma pessoa que mudou a minha vida. Como assim folhear tão displicentemente um livro com a produção de Edward Hopper?

Ela não sabia que o compêndio, emprestado por ela para a anfitriã que nos recebia naquele dia, já havia sido degustado por mim enquanto os outros convidados conversavam amenidades. Depois de tirar fotos da República que se abria à janela e das pessoas do estúdio, o magnífico álbum me chamou para conversarmos à parte. Não sei quanto tempo, mas talvez por uma hora mergulhei em viveres que se tornaram urgentes, enquanto os meus ouvidos se fecharam para o outro mundo. Até que à porta bateu a “dona” daquelas páginas que, mais adiante, publicaria novas páginas em minha vida. Mas essa história você já sabe.

Acho que nada ocorre por acaso, como não foi por acaso que Hopper tenha aportado em minha retina num novo século e reorientando a minha vida. Oitenta anos após de ter sido finalizado, continua a viver em mim, como viverá sem fim as suas personagens — materiais e fluídas — como também para vários outros seres abduzidos por sua realidade em descores.

Obdulio Nuñes Ortega

é autor de Curso de Rio, Caminho do mar

Plural  | A cidade da minha escrita

Sempre que me proponho a escrever, alguma coisa acontece no meu coração que pulsa no cérebro. Ambos viram um único órgão. A ideia surge como que por encanto das fadas da boa escrita. No entanto, deixei de acreditar em fadas e duendes há muito tempo.

Só eu sei o duro que dou me debruçando no teclado e quase adentrando a tela do notebook. A visão não é mais a mesma do tempo de meninice. Aos cinquenta e muitos, haja lentes monofocais Zeiss para enxergar o que muitas vezes a alma não deseja ver.

Percorrer estradas de minhas letras tecidas, pode muitas vezes, ocasionar em acidentes geográficos, de trânsito ou o pior deles: encontrar um amor, se iludir, amar e desamar e, se armar diante da desilusão. Já caí em cada buraco nessas travessias…

Em cada esquina, Dionísio oferece um gole. Conforme meu estado de espírito, a bebida desce maria mole. Há momentos que a acidez de minha ira, acarreta a fermentação excessiva da boa bebida. Cuspo de lado e sigo tentando permanecer em linhas retas mas qual quê, nada sei fazer de forma lógica então, paro, mergulho no chão, engulo poeira estelar que desmaiou de tanta poluição, adormeço e até esqueço que sou escritora e então sonho.

Sonho que sou arquiteta e tal qual Niemeyer, traço espaços arredondados, crio belezas que perfumam a alma, teço padrões que acalmam e fazem toda criança sorrir. Crio parques temáticos onde a alegria é genuína e não direcionada. Os brinquedos obedecem a ordem de criar cenas onde é imperioso ser feliz.

Recordo que — quando cheguei por aqui — eu nada entendi. Escrever, como assim? Eu não sou capaz então, lembrei que já havia Rita Lee e a sua mais completa tradução. Quis ser ela: rebelde, talentosa, debochada, ruiva e sardenta. Ah mas os prédios que se erguiam ao meu redor me deixava confusa, sem norte, sem visão de como e onde seguir.

Assim fui despejando um rio de palavras à esmo, inundando ruas, derrubando árvores, apodrecendo tudo ao redor. Ainda não aprendi a usar a métrica, não faço ideia do que venha a ser a tal da estrutura, muito menos faço distinção do que seja metáfora. A única certeza da cidade que construí, é que ela é o avesso, do avesso, do avesso, do avesso…

Roseli Pedroso

É canceriana regida pela Lua. Bibliotecária. Leitora voraz e escritora por necessidade. Em 2010, participei do curso de criação literária promovido pela Editora Terracota em parceria com a Universidade Cruzeiro do Sul. Fruto desse curso foi a participação da antologia de contos Abigail. Não parei mais.

É autora de Quinta das Especiarias…

Plural  | Motivo (4)

Elemento de Felicidade

Palavras são matéria-prima para Arte.

Quando alguém diz bem um poema — às vezes o leio — uma rima me surpreende, me cutuca o diafragma e muda o ritmo da minha respiração. Como me faz bem, me torna mais feliz! Emersão do inesperado que no fundo, bem escondido, eu sabia. Sintoma físico do prazer estético.

Alguns seres vêm ao mundo com uma capacidade tão especial de sentir e expressar o que os outros sentem. Dom precioso. Essas pessoas, que se denominam Poetas, a quem o Universo permite captar e materializar o que os demais mortais experimentam sem se aperceber, são alvo de minha admiração e meu respeito, assim como de minha gratidão.

O que seria de mim sem a Poesia?
O que seria o mundo sem Poesia?

O Poeta se alimenta da dor. Mesmo que não seja a sua. Mesmo que pense fingir dor de outrem, ele se a apropria e sofre. Saudade. Do amor que nunca teve, do amor que pensou ter. O Poeta nos mostra a beleza que habita em nós, sozinhos não sabemos ver.

Isabel Rupaud

cansada de trabalhar textos dos outros, traduzindo documentos técnicos e jurídicos por mais de 40 anos, meteu-se a escrever tardiamente. Ao mesmo tempo ousada e prudente, acha que o mundo é divertido e os obstáculos e dificuldades constituem desafios. O pé que tem na França, onde morou por quatro anos, inicialmente como estudante de Linguística e depois casada, tem muito peso em sua personalidade.

É autora do livro de crônicas De Pato a Ganso

Plural  | Motivo (3)

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou 
poeta.

Fragmento do poema “Motivo”, de Cecília Meireles

Poeta ou poetisa? Também sou do clube de Cecília Meireles, sou POETA. Sou pela língua viva, orgânica que extrapola o dicionário, a nomenclatura, a gramática dos gêneros. Estou emparelhada aos movimentos sociais, língua explosiva quando negam o direito à vida. 

Encontro eco ao ler Lunna Guedes, ela mesma ou a voz de Catarina, pois sua escrita é tomar uma infusão de ervas que inebria: “Sei o verso que chega e se aconchega nos olhos e na boca, na pele”…

É ouvir Chico César ao violão dedilhar: “Chega tem hora que ri de dentro pra fora/ Não fica nem vai embora/ É o estado de poesia”.

Encontros assim é oração, estado de graça, porque, continua Lunna: “Ler poesia é ler-se… em algum momento a pele goza do arrepio sagrado da primeira vez e eu terei minha porção de tudo e nada (de novo). Amém.”

Oração verbal ou nominal plena de sentidos, de significados, de intenções. Assim como os versos se quebram na linha reta, contínua, a linguagem carrega em POETA todo um ritmo peculiar para captar o instante. É a celebração da palavra, sílaba a sílaba daquilo que atina os sentidos não somente em mim, mas em quem me lê, sábia Cora Coralina resume tudo isso muito bem: “POETA não é somente o que escreve. É aquele que sente a poesia, se extasia sensível ao achado de uma rima à autenticidade de um verso”. Atrevida exibo minha: 

Flâmula

poeta sou
sigo a voz
que chama
solta
e
revolta
sigo o peito
que inflama

poeta sou
solto a voz
que alumia
a estrada
onde companheiras
& companheiros
me esperam com o
coração na epiderme

ESCREVER é dialogar com a mente. É trabalho hercúleo, exige conhecer-se. Eu me autorizo a escrever, a interpretar, a sonhar, a ficcionar. Ao mesmo tempo que descubro que tipo de leitor eu sou. LER é descobrir universos paralelos que revelam-se as influências literárias. Captou a composição estética e a crítica? Exige harmonia entre forma e conteúdo com humor, deboche, ironia, crítica social/política, lirismo. Não é mero amontoado de palavras em linhas quebradas quando se trata do poema. Nem parágrafos bem ajustados em linhas paralelas na prosa. Saliento que ambos têm ritmo, compasso e descompasso, mas não me peçam para explicar um poema. 

Aprendi com Hilda Hilst: “É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar. Se pelo menos um amante da poesia foi atingido e levantou de cara limpa depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas, escreva, apenas isso: fui atingido. E aí sim vou beber, porque há de ser festa aquilo que na Terra me pareceu exílio: o ofício de POETA”. 

Ao compreender que literatura é afetar, socar, sacudir, a/o POETA promove um esforço coletivo para salvar a vida de alguém ou talvez salvar a si própria/o.  

POETA sou e organizo o pensamento, vasculhando a memória na busca de narrativas, descrições e reflexões. Vasculho, ainda, gavetas, caixas e baús para capturar lembranças, sentimentos, sensações. Nesses cofres secretos, ficam os gatilhos para minha-sua-nossa escrita: objetos, fotos, cheiros, perfumes — estímulos para a produção literária.

Os poemas ganham destaque, com jogo de palavras cravado na memória e na curiosidade de sentidos, sinestesias em efusão, metáforas, sentimentos em turbilhão.

Desesperada, devastada, dardos do desânimo disparados, descansaremos quando? Desigualdades dilacerantes, denúncias, demandas, desgraças que nos arrasam e nos arrastam para o fundo do poço. Seja na escuridão da noite, seja na noite sertaneja enluarada, somos seres desejantes, o mundo precisa de um abraço, eu preciso de um abraço…

Catástrofe sanitária, cegueira no horizonte, colapso mundial, tudo desmoronando, estou fazendo arte? De nada adianta lutar?  Como POETA faço aquecimento, carrego kit sobrevivência, até parece que vou-vamos entregar os pontos! POETAS somos! Abaixo a corrupção, a necropolítica, os sem-noção! Quanto ainda nos falta para chegar a ser nação? Que rolem os dados…

Não contavam com nossa astúcia: lockdown  utópico que nos faz caminhar para dentro de si e depois, quem sobreviver, ocupar o cenário exterior.

O adágio popular faz sentido: Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe. Contagem regressiva para os sobreviventes. Sinal dos tempos que dias melhores virão. A luta pela vida se faz diária, enquanto uns seguem delirando, alguns nem sabem do que se trata, outros, imunizados estarão com vacina e poesia. Em luto, em luta, poesia como antídoto.


P.S. 1 
Mas ousadia mesmo é com Jéssica Iancoski
que reivindica a autoria:

Também


devo me apossar 
da palavra autor
se enfraquecido
não existe o masculino
sou poeta sou autor
sou o dono da minha vida
e acima de tudo 
mantenho-me mulher

O que posso dizer? Somos os donos de nossa voz no mundo. Síntese intensa traz seus versos, lacrou total! Isso é 

Nocaute


pilhados?
trocam-se três por um
adeus aos neurônios suicidas


P.S. 2
E para fechar o ciclo, deixo uma dica que copiei nem sei quando nem de onde.

Ritual das folhas que caem

Procure no chão de jardins ou praças, sete espécies
diferentes de folhas “caídas”. Coloque todas juntas
numa pequena pilha e costure parte de suas bordas
de maneira que pareça um pequeno livro de folhas
verdes. Este é seu livro mágico da Natureza.
Coloque-o dentro de um envelope e tenha-o sempre
por perto. Ele é um canal para sua vida mágica,
pois todo o conhecimento contido nas folhas
será transmitido a você por meio da sua intuição.
Poesia virou autoajuda agora?
Sempre foi, palavra de POETA que vê poesia
como presença de afetos, ainda mais em tempos
de pandemônio social e viral, tornou-se
companhia na falta do espaço coletivo presencial.

Rozana Gastaldi Cominal

…é autora de MULHERES QUE VOAM

Plural   | Motivo (2)

lhe servirei iguarias caramelizadas com palavras
embaladas em versos rebeldes e livres

palavras de mulher mulher de palavras mulher forte
mulher fortaleza mulher que nomeia o mundo mulher
criação palavras banquetes fiandeira de significados
e significantes deusa das palavras rebeldes e livres
mulher poeta suavidade e força palavras faca cortante
e precisa na opressão palavras corpo coletivo feminino
poetas autoras escritoras mulheres poética feminista
poetas poder das palavras poetas não aceitam diminutivo poeta
é poeta mundo das palavras das poetas é vasto
e profundo mulheres escrevem e inscrevem corpos e
mundo o dicionário aceita poeta ou poetisa não somos
dicionários eu você nós somos poetas de palavras
cantamos em coro com a poeta Cecília Meireles 

Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está
completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta

Nirlei Maria Oliveira

é Poeta e Bibliotecária com mestrado em Ciência da Informação, nasceu em  Formiga MG, e reside em Campinas, SP. Trabalha no IFSP, Campus de Hortolândia. Atua com ações e projetos de estímulo à leitura. Organizadora da coletânea Quarentena Poética (2020). 

É autora do livro de poesias Palavr(Ar)

Plural  | Motivo

Eu penso no som da palavra, like always.

É como colocar um peso em cada uma das mãos para sentir densidade, forma. E o que mais me agrada é Poeta. Porque nunca sei o que vem. Sei o verso que chega e se aconchega nos olhos e na boca, na pele. É mais ou menos como pão quente que sai do forno e a faca escorrega a manteiga… num deslizar gostoso, quase um afago morno no outro.

Sei o verso e a força que tem ao ler.

Que é a minha própria voz que reproduz, como um eco distante que vai se aproximando e ressoa em meus labirintos, misturando-se. Sou casulo, nessas horas, eu acho. Certeza me falta porque quando um verso colide contra a minha mortalha, nunca sei o que sou, quem sou e se serei alguma coisa depois disso. 

Sei que nos tornamos uma coisa una e nessa unidade não cabe gênero.

E a palavra Poeta ressoa em superfícies que são corpos de homens e mulheres habitados ou não por figuras femininas ou masculinas que escrevem emoções e que falam por mim. Como Eliot — o poeta inglês que me deixou sem paz durante tanto tempo, com suas formas de incêndios nada moderadas… Ou Emily que fez o meu olhar marítimo ao tecer seus silêncios noturnos, compartilhados como se fossem missivas. Ainda menina chorava versos inteiros e sorria para os outros, respostas brancas, emaranhadas em filamentos de papel.

Posso enumerar nomes, mas não seria suficiente.

Ficaria eu com Cecília e sua escrita noturna, alheia a tudo que o dia expunha. Ela guardava tudo que via e sentia e experimentava nas horas mais silenciosas. Escrevia: “eu canto porque existo” — que nomeia essas linhas porque não poderia ser outro verso a capitanear meus desaforos. 

E a minha Cecília nem precisava se dizer poeta.
Mas disseram-na e deixaram claro que ela não era poetisa. Era poeta… e das Grandes. 

Quem sou eu para discordar?

A Mulher é uma das minhas Poetas preferidas, ao lado de tantas outras-outros-muitos. Mas eu não olho para a palavra poetisa com olhos de leitora.

A palavra não ecoa meus cantos.
É apenas um invencionismo.

Mas essa discussão eu deixo para os que discutem a língua e seus caminhos de ser. Esse organismo bem vivo que vai moldando o homem, se adequando ao tempo e ao espaço, ao corpo e a matéria. Alguns querem-na estática, retida em meia dúzia de regras. Imagino uma gargalhada e vou para as ruas. Em dia de feira é que se ouve um bom idioma falado-cantado… porque o som das vozes que ecoam pelas calçadas é outra coisa. 

Existem palavras que se perdem, outras que se retorcem e se diluem. São outras coisas. Ganham sentidos vários e, às vezes, deixam de ser. A palavra na boca é doce, amarga, salgada, ácida…  O melhor e o pior dos temperos. Mas, nas mãos de um poeta. Ah é força, eco, silêncio, barulho, é canto, sonho, pesadelo. É verso, livro, soneto, quadrilha: é poesia! E isso é para Poetas. 

Evoé…

Lunna Guedes


Nasci em Gênova, no ano de 1981… o mês era novembro e vim ao mundo sob a regência de sagitário, numa casa com três números, cuja soma sempre me intrigou. Aprendi a ler e a escrever na mesa da cozinha. Fui para a escola aos seis anos e não me saí muito bem. Mas fui até o fim e conclui todos os estudos… atualmente escrevo e bebo café, não necessariamente nessa ordem…

Cartografia | Lua Souza

Uma amiga poeta e dona do brechó vintage mais legal que conheço, ressignificou uma frase de Belchior. Ela não sabe, mas roubei a frase pra mim desde então: “a saudade é uma roupa que me veste”…que é quase como, “sinto saudades, logo existo”.

Mas essa não é uma história sobre saudade, quer dizer… é também, mas não é só… Jéssica é, de longe, a pessoa que mais me conhece. A encontrei em uma empresa que trabalhamos, não digo a conheci porque, sim acreditamos nesse lance de encontros e conexões da vida — isso foi em 2012. Não passou muito tempo até que ela me “diagnosticasse” com nostalgia crônica severa ou era aguda? Minha memória anda preguiçosa, enfim não pude contestar, o que posso dizer, sou um ser incorrigível.

Acontece que no meu último aniversário, agosto de 2021. Era um sábado gelado, típico de inverno — a propósito, eu amo temperaturas amenas, por isso minhas estações preferidas são outono/inverno. Nesse dia pela manhã, ainda de meias e pijama — não que eu tivesse a intenção de vestir-me de outra maneira, até porque o trabalho remoto nos obriga a usar esses trajes. Recebi via ifood, aliás, o novo normal desse longo e interminável período pandêmico, o presente mais lindo que ganhei aquele dia: um monóculo. Isso mesmo, produção!

É engraçado como um simples objeto tem o poder de nos transportar para outro tempo, outra época. Em frações de segundos, eu era a criança sensível e curiosa do final da década de 1990. Aquele pequeno monóculo — como uma reação em cadeia — desenterrou uma sequência de memórias que há tempos não vivia. Como toda criança daquela época, ou quase todas, o meu passatempo favorito era colecionar as coisas.

Entre cartões telefônicos, botões, tecidos e moedas, eu tinha uma caixinha com esses monóculos, alguns negativos não revelados e fotos desfocadas, algumas com sombras que mais pareciam vultos, com as cabeças cortadas das pessoas. Não tinha sensação melhor que acompanhar mamãe em sua ida à loja Foto Juarez, era realmente uma aventura e tanto pra mim- revelar aquelas fotos. Sempre era a primeira a ver o resultado do talento que minha mãe não tinha- tirar retratos não era seu forte, mas possuía o principal, boa intenção. Como era a única da família com uma câmera, revelava a mesma foto várias vezes, uma pra cada tia. Foi numa dessas idas que começara a minha coleção de monóculos — um de cada cor.

Eu amava enxergar por aquela lente tão pequena e imaginava como aquela fotografia tão grande foi parar dentro de um negócio tão estreito.

O fato é que antes deu ler o cartão de presente, enquanto desembrulhava a folha de seda e ambos, seda e barbante caírem ao chão, eu já sabia quem havia me enviado aquela relíquia: Jéssica


Essa é uma história sobre amizade.

Lua Souza

A autora que vos fala é uma filha de Letras. Gosta do som dançante do encontro entre vogais e consoantes. Dos radicais e de uma cartaze…
é a própria epifania materializada.
Gosta das formas e imagens. De tomar um porre de palavras.
Também gosta de observar as pessoas nos trens, parques e escrever sobre elas. Gosta do jeito que a cidade olha para ela.
De sorrisos, aqueles com todos os dentes. De pequenas coisinhas que a salvam do caos: música é uma delas. De bandas de rock e poetas modernistas. Gosta das referências e que as coisas façam sentindo no mundo dela — da Lua. Gosta do nome Clarice… da Maria Ribeiro e da Viviane Mosé. De ser metódica, quase demodê. Do barulho de máquina de escrever. Gosta de rimar. Gosta da palavra gostar.

É autora do livro de poesias Estratosférica