Ambrósio sempre se interessou por Biologia… E a Zoologia era o ramo que mais o atraía. Quando ficava sozinho na Casa Paroquial, livre das bajulações de ajudantes e o assédio das beatas, chegava a rir da comparação que fazia ao se imaginar especialista em ofídios.
Filho da cidade, conhecia intimamente os habitantes do serpentário. Cresceu ouvindo as histórias verídicas… e inventadas pelas espécimes do local — o que não importava — já que os efeitos eram os mesmos, em sentidos contrários: exaltação ou execração dos envolvidos.
Quanto mais inverossímeis os casos sibilados, mais ganhavam credibilidade. Por isso, ainda que fossem confissões a Deus por seu intermédio, desconfiava do que ouvia.
O religioso era um cético.
Quando garoto, costumava percorrer os lugares mais ermos do município, mato adentro, para observar os animais em seu habitat natural. Tinha interesse em todos — pássaros, insetos, roedores pequenos, peixes, cobras e felinos, mais raros. Certa ocasião, viu uma onça — um ser mágico e majestoso. Percebia a mão de Deus no equilíbrio do bioma sem interferência da mão humana.
Mas o que o impressionou para o resto de sua vida foi a visão, quase um sonho, de uma humana, Iolanda, banhando-se à beira do rio, junto às amigas.
Entre as quatro ou cinco meninas, a luz do sol entre os arvoredos foi repousar nos cabelos molhados da moça que ondeava, ria e brincava como se fosse o vento em forma de gente. Estavam em trajes menores e acostumado desde bem pequeno a se apartar das mulheres por imposição da mãe, que o havia prometido para a vida monástica, sentiu o corpo inteiro incendiar-se.
Apaixonado, via Iolanda crescer cada vez mais bonita, frequentando o seu olhar tanto na escola quanto na Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, para quem rezava fervorosamente. Sua mãe percebeu esse crescente interesse do adolescente que desejava santo e não via a hora que fosse fazer o curso de Teologia no Seminário, de onde sairia pronto para se dedicar à piedosa profissão da fé em Cristo.
Quando um intruso mais velho, Darci, conseguiu a permissão de noivar a sua amada Iolanda, percebeu que ser padre era o que lhe restava. Sentia-se uma ovelha em sacrifício — uma oblação — para aplacar a ira divina sobre sua mãe. Seu rancor por ela se iniciou ali.
Ambrósio, em costumeiras reminiscências, ouvia a voz daquela que lhe gerou aconselhando a manter distância daqueles seres inconcebíveis — as fêmeas — motivo de tragédias e louvações, competindo com o santo caminho de Deus. E, se colocar bem distante de Iolanda, filha de uma mulher da qual ela não gostava. Soube mais tarde que as duas foram rivais na atenção do seu pai. Formado padre, antes de morrer, confessou ao filho que engravidou antes de se casar, o que precipitou o pedido daquele a quem se entregou.
Um casamento realizado às pressas.
Para se redimir diante de Deus, ofereceu o filho à Igreja. Mal conseguiu lhe conceder perdão no seu leito de morte.
Padre da cidade, posição que não desejava, mas que a insuspeita influência de sua mãe intercedeu para que assim o fosse, muitas vezes se esquecia de seu próprio nome. Ou fazia questão de esquecer, porque sempre que o ouvia era na voz dela. Até que deixou de ser dito e passou a ser conhecido apenas pelo título: Padre. Muitos de seus fiéis o conheciam desde que nascera. Chamá-lo apenas de Padre talvez tenha sido uma maneira de tornar impessoal a relação com o religioso. Uma providencial barba fez com que os conterrâneos se esquecessem do rosto da criança calada, nascido da beata mais dedicada da cidade.
Não duvidavam que fosse um homem consagrado à Deus. Abriam os seus corações ao vigário que carregava o peso de tantas, variadas, pequenas e abjetas maledicências. Um fardo que carregava e que apenas era aliviado quando voltava do encontro com seu padre confessor.
Para seu suplício, Iolanda nunca se confessava.
Guardava para si a única vez com que falou com ela, na sala de aula. Tímido, pediu a borracha emprestada. Ao ouvir o seu nome dito com todas as letras: “I-O-L-A-N-D-A” …sorriu luminosamente e devolveu: Pode me chamar de Ioiô, como todo mundo.
Guardou esse momento como se fosse um tesouro precioso. Mas para não se sentir como todo mundo, de si para si a chama de Iolanda. Mas nunca pronuncia o doce nome em voz alta. Para sempre dedicaria a ela uma forma de amor reverso. Ao atacá-la, maldizendo as suas práticas estranhas e comportamento pagão, queria chamar a sua atenção.
Mas a menina exuberante, a moça equilibrada,a mulher forte que conheceu nunca se deixaram atingir. E agora, parecia que ela estava se tornando uma rival no seu campo de atuação — o da crença. Não bastava o avanço das crendices espúrias de origem africana e a invasão paulatina do protestantismo?
Um dia, o Padre acordou numa piscina de suor. Os lençóis, as fronhas dos travesseiros, a leve coberta, totalmente úmidas, impressionaram a senhora que cuidava da limpeza e arrumação da casa paroquial. Ela não tinha tanto trabalho assim.
O Padre era um homem regrado, de hábitos frugais. Apenas as roupas que ele usava fora da atividade religiosa — em seus passeios pela mata — ficavam cheias de asas de insetos, marcas de sangue nas mangas de camisas, espinhos e ramos de plantas grudadas nas calças jeans.
E foi justamente na volta de uma dessas expedições que Ambrósio voltou perturbado.
Havia encontrado Iolanda na beira do rio, como há quase quarenta anos. Ela parecia orar para as águas claras e calmas que vibravam em vida esverdeada pelo entorno. Nua, parecia um ser etéreo, fora deste mundo. Duvidou dessa visão, porque parecia ter entrado em transe. Naquela noite, sonhou que Iolanda havia gerado um filho seu. Ouviu o choro da criança e a sua amada, em sorrisos, sacando uma das suas belas e fartas tetas, oferecendo ao menino, que a abocanhava com sofreguidão. Em dado momento, era ele que estava em seu colo, a sugando, com desejo.Despertou sem saber se tudo que havia vivido naquele dia não fazia parte do mesmo sonho. Mas as roupas colocadas para lavar confirmavam que tivesse saído. Atônito, chorou por sua vida toda, imposta desde o início por outra pessoa que não ele.
Seria um feitiço da Bruxa?
Sentir-se-ia perplexo se soubesse que do outro lado da pequena cidade, Dona Ioiô, a sua Iolanda, tinha tido o mesmo sonho…
Obdulio Nuñes Ortega… deu-se que refugiados da Guerra Espanhola aportassem no Brasil e dentre seus frutos, uma moça uniu-se a um gentio da terra nova, refugiado do sul do continente. Geraram um brasileiro desorientado do sentido da vida e desequilibrado por força da Balança que o rege. Supera seus íntimos mistérios, os expondo a quem quiser lês-los, no cenário da palavra. Acredita ser escritor, o melhor que puder ser tendo como base a si mesmo. Espera não alcançar a eternidade, mas sabe-se infinito.