Marielle… presente!

“Eu enquanto favelada, eu enquanto vereadora, que sei que desde a minha época de pré-vestibular comunitário, quando tive que fazer mais pré porque as escolas da região não me davam condições de tá nas Universidades Públicas, já sabia que isso era político”.

Marielle Franco
1979 — 2018

Cinco anos se passaram… e a pergunta ressooa, sem respostas. Foi-se a Mulher. Mas não foi em vão. Sua luta se tornou herança de muitas outras…

E neste 14 de março (que soube ser o dia nacional da Poesia) convido você a leitura dos textos escritos ontem e hoje por encomeda para um projeto que é memória para que a gente nunca se esqueça que a luta continua por ela e por todas nós…

Boa leitura…

Três poemas de
Adriana Aneli

Um grito…

Uma missiva para Marielle

Dois poemas de
Nic Cardeal

Uma crônica de
Obudlio Nuñes Ortega

Coluna Plural | Noturno

Quando garotinho, nossa mãe nos acordava à 4h30 da manhã para tomarmos café. Eu dormia no corredor, numa cama de molas, a qual desmontava, deixava num canto e vestia a roupinha para irmos, meus irmãos e eu, ao Parque Infantil da Barra Funda. Na Periferia de poucas luzes, a escuridão imperava e as estrelas brilhavam como nunca mais na minha vida. Íamos pegar o ônibus já lotado às 5h30. Nesse horário, a noite ainda vencia o dia e somente no verão éramos acompanhados pelas primeiras luzes.

Desde então, já dormia pouco. Costumava ficar deitado na laje vendo as estrelas tremeluzirem seu passado. Atividade que só trocava por programas musicais ou filmes de ação na TV PB de 14”. Nunca supus que no futuro a minha atividade seria eminentemente noturna, mas na adolescência só dormia com as primeiras luzes. Passava o silêncio a ser preenchido com os sons das palavras que brotavam em minha mente e escorriam por minhas mãos e dedos para os papéis transbordados de sentenças definitivas.

O pretenso escritor sentia como se a noite abençoasse as suas frases feitas de estrelas e cantos de galos, muito comuns naquela época. Por eles, conseguia marcar o tempo – 4h… 5h… e sol a me pedir que dormisse. Estudava à tarde. Nunca saía para lugar algum, a não ser para dentro de mim, onde escondia os meus segredos testemunhados pela noite que eu considerava uma entidade – com corpo, intenções e entendimentos.

Filho da noite, à mãe compreensiva confessava a razão de temer tanto às mulheres. Os meus amores infrutíferos, feitos para acabar, jaziam num canto sob pilhas de cadernos em que os vivia profundamente. Amá-las sem conhecê-las salvava a minha dignidade das objeções por ser tão canhestro. Quando a lua surgia, sabia que era aceito e eu a namorava recebendo beijos em meus olhos…

Obdulio Nuñes Ortega — deu-se que refugiados da Guerra Espanhola aportassem no Brasil e dentre seus frutos, uma moça uniu-se a um gentio da terra nova, refugiado do sul do continente. Geraram um brasileiro desorientado do sentido da vida e desequilibrado por força da Balança que o rege. Supera seus íntimos mistérios, os expondo a quem quiser lês-los, no cenário da palavra. Acredita ser escritor, o melhor que puder ser tendo como base a si mesmo. Espera não alcançar a eternidade, mas sabe-se infinito. 

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O ano do fim das ilusões

Marcamos o encerramento de um texto com o ponto final ou reticências… Porém, assim como pretende expressar o sinal de reticências, a repercussão da sua leitura poderá se espraiar para além dele. Lavoisier decretou definitivamente através da palavra a substância de nossa existência para além da composição-decomposição químico-física do mundo que nos rodeia, aqui dentro e além, fora: ”Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E, apesar de inúmeras vezes não nos vincularmos a ela, somos resultado de experiências naturais de milhões de anos na Terra.

Sobre o ano que termina, poderíamos perguntar: o que ele deixa de significado para a História? A minha crença é que 2022 não ficará restrito aos 365 dias que oficialmente se findará na vigésima-quarta hora do dia 31 de dezembro. Creio que águas passadas continuam a mover moinhos, por mais que a “desculpa” pronta dita por aqueles que carregam responsabilidade acrescente o “não”. Vale para os bons e os maus feitos.

Normalmente, os fatos são enganadores à primeira interpretação. Alguns malvistos de início, com o tempo demonstram-se redentores. E há aqueles recebidos como auspiciosos que no decorrer do tempo repercutem negativamente. Mais gravemente, devastam o que encontram pelo caminho como se fossem água morro abaixo ou fogo morro acima. As avaliações precipitadas são sempre enganosas. Quando as acertamos, será sempre por puro e inesperado senso de oportunidade.

Porque é assim. Eu, por exemplo, em meados de 2020, anunciei que aquele ano havia se iniciado em 2019 e, com boa sorte, terminaria em 2022. Errei. Em 2023, 2019 continuará a ditar a sua marca através da Covid. As aglomerações de final de ano deverão elevar o número de óbitos da atual média de 130 por dia. Assim como o má-administração do País, sob a égide do negacionismo com faceta fascistóide do governo central, fez eco em boa parte da população brasileira.

O que supostamente fora uma reação à corrupção institucional encontrou em um Miliciano, o paladino da justiça, carreando o ódio da Classe Média (ou que se considera como tal) às diferenças raciais e sociais imiscuídas ao ranço patriarcal que englobou a identidade de gênero, rejeição do direito das mulheres e aos que não tenham as plenas capacidades físicas e mentais. Demonstrando que somos um povo doente – pobre e elitista – como se estivéssemos presos a uma miscelânia que uniria Síndrome de Estocolmo com Munchausen – neste último caso, acresce-se o elogio à enfermidade – como bandeira.

Na falta de escolhas “corretas”, fizemos um percurso tortuoso que provavelmente é a mais acertada para 2023, politicamente. Tanto quanto em 2018, eu optei por voltar o meu olhar para a Esquerda. Ainda que saiba que no Brasil, isso não queira dizer muita coisa, já que os posicionamentos muitas vezes se mostram ambíguos. A única certeza que tenho é que a Direita é igual no mundo todo – perniciosa em manter as populações excluídas do progresso humano, em que pessoas devam ficar engessadas em um sistema de castas, como se vivêssemos no Século XVIII.

2022 nos mostrou que a guerra pode surgir em qualquer lugar. A Europa está mergulhada na luta fraticida – o pior que pode existir, por ser mais rancorosa. A luta não é apenas para ampliar as linhas fronteiriças, mas para impor a agenda de senhores saudosos de um império que não existe mais. O desejo em propagar no tempo modelos de dominação ultrapassados, baseados no orgulho da nacionalidade não tem mais sentido em um planeta tão diverso em tendências de desenvolvimento alternativos à antigos processos de governança.

Ao mesmo tempo, percebemos que a Terra precisa do esforço humano coletivo para defender o meio ambiente que sofre como nunca os efeitos da atuação equivocada das lideranças governamentais, calcada no setor econômico que busca lucro a qualquer custo. Ao fina, a conta não fecha. Ficaremos sempre no vermelho. Cada vez mais a Meteorologia será motivo de conversas entre pessoas que discutirão fenômenos climáticos como se fosse pauta obrigatória.

Economicamente, é uma questão de tempo que o Oceano Pacífico volte a ser aquele em torno e através do qual seus países assumirão o protagonismo na produção da riqueza, capitaneada pela China. Os países separados pelo Atlântico – os da América e os da Europa – com populações menores e economias empacadas, tendem a perder liderança em várias áreas de atuação planetária. Porém buscarão estabelecer uma agenda centrada na observação dos Direitos Humanos e no uso de tecnologias limpas, caminhando no sentido inverso ao de seu histórico de exploração colonialista em séculos passados. Pelos menos em aparência, é a tendência que espero ver acontecer.

O ano do fim das ilusões – título que usei para este texto – diz mais respeito ao meu desejo do que um prognóstico factual. Falam em ciclos históricos repetidos de 100 em 100 anos, mas no Brasil isso parece estar reduzido drasticamente para 20, 25 anos. Ivan Lessa, escritor já falecido, chegou a dizer que “de 15 em 15 anos, o Brasil esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos”. Isso colabora para que, de tempos em tempos, caiamos na fossa péptica social que nos coloca em posição astral de um Mercúrio Retrógado. É como se caminhássemos passos para atrás ano após ano.

Obdulio Nuñes Ortega… deu-se que refugiados da Guerra Espanhola aportassem no Brasil e dentre seus frutos, uma moça uniu-se a um gentio da terra nova, refugiado do sul do continente. Geraram um brasileiro desorientado do sentido da vida e desequilibrado por força da Balança que o rege. Supera seus íntimos mistérios, os expondo a quem quiser lês-los, no cenário da palavra. Acredita ser escritor, o melhor que puder ser tendo como base a si mesmo. Espera não alcançar a eternidade, mas sabe-se infinito. 

CASA de vidro  | O padre da cidade

Ambrósio sempre se interessou por Biologia… E a Zoologia era o ramo que mais o atraía. Quando ficava sozinho na Casa Paroquial, livre das bajulações de ajudantes e o assédio das beatas, chegava a rir da comparação que fazia ao se imaginar especialista em ofídios.
Filho da cidade, conhecia intimamente os habitantes do serpentário. Cresceu ouvindo as histórias verídicas… e inventadas pelas espécimes do local — o que não importava — já que os efeitos eram os mesmos, em sentidos contrários: exaltação ou execração dos envolvidos.
Quanto mais inverossímeis os casos sibilados, mais ganhavam credibilidade. Por isso, ainda que fossem confissões a Deus por seu intermédio, desconfiava do que ouvia.

O religioso era um cético.

Quando garoto, costumava percorrer os lugares mais ermos do município, mato adentro, para observar os animais em seu habitat natural. Tinha interesse em todos — pássaros, insetos, roedores pequenos, peixes, cobras e felinos, mais raros. Certa ocasião, viu uma onça — um ser mágico e majestoso. Percebia a mão de Deus no equilíbrio do bioma sem interferência da mão humana.

Mas o que o impressionou para o resto de sua vida foi a visão, quase um sonho, de uma humana, Iolanda, banhando-se à beira do rio, junto às amigas.

Entre as quatro ou cinco meninas, a luz do sol entre os arvoredos foi repousar nos cabelos molhados da moça que ondeava, ria e brincava como se fosse o vento em forma de gente. Estavam em trajes menores e acostumado desde bem pequeno a se apartar das mulheres por imposição da mãe, que o havia prometido para a vida monástica, sentiu o corpo inteiro incendiar-se.

Apaixonado, via Iolanda crescer cada vez mais bonita, frequentando o seu olhar tanto na escola quanto na Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, para quem rezava fervorosamente. Sua mãe percebeu esse crescente interesse do adolescente que desejava santo e não via a hora que fosse fazer o curso de Teologia no Seminário, de onde sairia pronto para se dedicar à piedosa profissão da fé em Cristo.

Quando um intruso mais velho, Darci, conseguiu a permissão de noivar a sua amada Iolanda, percebeu que ser padre era o que lhe restava. Sentia-se uma ovelha em sacrifício — uma oblação — para aplacar a ira divina sobre sua mãe. Seu rancor por ela se iniciou ali.

Ambrósio, em costumeiras reminiscências, ouvia a voz daquela que lhe gerou aconselhando a manter distância daqueles seres inconcebíveis — as fêmeas — motivo de tragédias e louvações, competindo com o santo caminho de Deus. E, se colocar bem distante de Iolanda, filha de uma mulher da qual ela não gostava. Soube mais tarde que as duas foram rivais na atenção do seu pai. Formado padre, antes de morrer, confessou ao filho que engravidou antes de se casar, o que precipitou o pedido daquele a quem se entregou.

Um casamento realizado às pressas.
Para se redimir diante de Deus, ofereceu o filho à Igreja. Mal conseguiu lhe conceder perdão no seu leito de morte.

Padre da cidade, posição que não desejava, mas que a insuspeita influência de sua mãe intercedeu para que assim o fosse, muitas vezes se esquecia de seu próprio nome. Ou fazia questão de esquecer, porque sempre que o ouvia era na voz dela. Até que deixou de ser dito e passou a ser conhecido apenas pelo título: Padre. Muitos de seus fiéis o conheciam desde que nascera. Chamá-lo apenas de Padre talvez tenha sido uma maneira de tornar impessoal a relação com o religioso. Uma providencial barba fez com que os conterrâneos se esquecessem do rosto da criança calada, nascido da beata mais dedicada da cidade.

Não duvidavam que fosse um homem consagrado à Deus. Abriam os seus corações ao vigário que carregava o peso de tantas, variadas, pequenas e abjetas maledicências. Um fardo que carregava e que apenas era aliviado quando voltava do encontro com seu padre confessor. 

Para seu suplício, Iolanda nunca se confessava.
Guardava para si a única vez com que falou com ela, na sala de aula. Tímido, pediu a borracha emprestada. Ao ouvir o seu nome dito com todas as letras: “I-O-L-A-N-D-A” …sorriu luminosamente e devolveu: Pode me chamar de Ioiô, como todo mundo.

Guardou esse momento como se fosse um tesouro precioso. Mas para não se sentir como todo mundo, de si para si a chama de Iolanda. Mas nunca pronuncia o doce nome em voz alta. Para sempre dedicaria a ela uma forma de amor reverso. Ao atacá-la, maldizendo as suas práticas estranhas e comportamento pagão, queria chamar a sua atenção.

Mas a menina exuberante, a moça equilibrada,a mulher forte que conheceu nunca se deixaram atingir. E agora, parecia que ela estava se tornando uma rival no seu campo de atuação — o da crença. Não bastava o avanço das crendices espúrias de origem africana e a invasão paulatina do protestantismo?

Um dia, o Padre acordou numa piscina de suor. Os lençóis, as fronhas dos travesseiros, a leve coberta, totalmente úmidas, impressionaram a senhora que cuidava da limpeza e arrumação da casa paroquial. Ela não tinha tanto trabalho assim.

O Padre era um homem regrado, de hábitos frugais. Apenas as roupas que ele usava fora da atividade religiosa — em seus passeios pela mata — ficavam cheias de asas de insetos, marcas de sangue nas mangas de camisas, espinhos e ramos de plantas grudadas nas calças jeans.

E foi justamente na volta de uma dessas expedições que Ambrósio voltou perturbado.

Havia encontrado Iolanda na beira do rio, como há quase quarenta anos. Ela parecia orar para as águas claras e calmas que vibravam em vida esverdeada pelo entorno. Nua, parecia um ser etéreo, fora deste mundo. Duvidou dessa visão, porque parecia ter entrado em transe. Naquela noite, sonhou que Iolanda havia gerado um filho seu. Ouviu o choro da criança e a sua amada, em sorrisos, sacando uma das suas belas e fartas tetas, oferecendo ao menino, que a abocanhava com sofreguidão. Em dado momento, era ele que estava em seu colo, a sugando, com desejo.Despertou sem saber se tudo que havia vivido naquele dia não fazia parte do mesmo sonho. Mas as roupas colocadas para lavar confirmavam que tivesse saído. Atônito, chorou por sua vida toda, imposta desde o início por outra pessoa que não ele.

Seria um feitiço da Bruxa? 

Sentir-se-ia perplexo se soubesse que do outro lado da pequena cidade, Dona Ioiô, a sua Iolanda, tinha tido o mesmo sonho…

Obdulio Nuñes Ortega… deu-se que refugiados da Guerra Espanhola aportassem no Brasil e dentre seus frutos, uma moça uniu-se a um gentio da terra nova, refugiado do sul do continente. Geraram um brasileiro desorientado do sentido da vida e desequilibrado por força da Balança que o rege. Supera seus íntimos mistérios, os expondo a quem quiser lês-los, no cenário da palavra. Acredita ser escritor, o melhor que puder ser tendo como base a si mesmo. Espera não alcançar a eternidade, mas sabe-se infinito. 

Lançamento | Senzala

R$ 35,00

Em “Senzala”, Obdulio Nuñes Ortega conta a história de horror de uma Mulher branca, herdeira de uma fazenda onde impera a escravidão e que sente atração pela inocência negra.

Enviada para a Capital após se envolver com um possível filho bastardo e negro de seu avô, Elizabeth se casa com um homem branco e afortunado de quem exige a liberdade que nega aos outros.

Ao se envolver com um pretinho, a forte narrativa de Obdulio Nuñes Ortega nos mostra as relações humanas e todo o horror, e surpreende mais uma vez ao abordar um tema que atordoa a própria ficção

Scenarium 8 | 2022

mosaicum (poesia e prosa) casa de vidro (contos) as estações (poesia)
barquinho de papel (prosa) manifesto-me (crônicas) nas nuvens (poesia e prosa)
o ano do gato (contos) em mãos (correspondência)

livro 01

Organizado por Lunna Guedes, essa edição convidou os autores a poesia e a prosa… os autores: Adriana Aneli, Nirlei Maria Oliveira, Flávia Côrtes, Obdulio Nunes Ortega, Caetano Lagrasta, Anna Carriero, Lígia Libaneo, Anna Clara de Vitto, Yara Fers, Joakim Antônio, Isabel Rupaud,Roseli Pedroso, Mariana Gouveia.

O resultado são poesias em páginas azuis e uma narrativa que se oferece enquanto trovão no azul…

livro 02

Quem conta um conto, aumenta um pouco e foi partindo dessa premissa que Lunna Guedes convidou Adriana Aneli, Carol Favret, Flávia Côrtes, Isabel Rupaud, Mariana Gouveia e Obdulio Nuñes Ortega para escrever narrativas a partir de um conto — o fio condutor de Casa de vidro, tão frágil quanto as emoções dos personagens que cicularm de conto em conto…

livro 03

Um livro de poesias que reúne 04 poetas da Scenarium Flávia Côrtes, Mariana Gouveia, Nirlei Maria Oliveira e Suzana Martins e suas estações da pele, da alma, do cuore e da alma…

livro 04

A idéia para esses cadernos de contar histórias foi uma dobradura colocada por uma criança numa poça d´água — despertando memórias. Veio o convite a prosa: Adriana Aneli, Bianca César, Isabel Rupaud, Lua Souza, Mariana Gouveia, Rozana Gastaldi Cominal e Suzana Martins aceitaram conduzir seus barquinhos de papel por esse mar de páginas…

livro 05

Lunna Guedes teceu o convite, uma crônica por semana, propondo os temas que cada autor levou na direção que quis, propiciando um olhar para muias paisagens…

Escreveram-se: Flávia Côrtes, Isabel Rupaud, Mariana Gouveia, Manoel Gonalves (Manogon), Obdulio Nuñes Ortega…

livro 06

Quando crianças, ao olhar para as nuvens, vemos desenhos de gatos, cachorros, coelhinhos, dragões… dizem que é o imaginário infantil. Mas e nós, adultos? O que vemos?

Isabel Rupaud, Lua Sousa, Mariana Gouveia, Nirlei Maria Oliveira, Rozana Gastaldi Cominal responderam com poesia e prosa…

         

livro 07

A idéia veio de Edgar Allan Poe e seu conto O gato preto que foi publicado em uma edição do Saturday Evening Post em agosto de 1843.

O conto é um estudo da psicologia da culpa…… e foi apresentado durante o encontro do Clube de Escrita da Scenarium…

Ananda Karenina, Isabel Rupaud, Lua Souza, Lunna Guedes, Mariana Gouveia, Obdulio Nuñes Ortega e Roseli Pedroso…

Sete autores, um para cada gato ou seria para cada vida?

Com ilustração de Valerie David Cats e poesias de Flávia Côrtes, Jorge Luís Borges, Patricia Highsmit, Rozana Gastaldi Cominal e Wislawa Zymborska.

livro 08

Uma troca de correspondência iniciada por Lunna Guedes… que escreveu ao vento e esperou por respostas para iniciar a aventura em linhas entre diferentes geografias, anatomias…

Responderam ao aceno: Flávia Côrtes, Mariana Gouveia, Rozana Gastaldi Cominal e Suzana Martins…

Rua 2, o livro de contos de Obdulio Nuñes Ortega

Pelos contos da Rua 2 passeiam personagens que se conhecem-desconhecem em sentidos contrários e direções marcadas. Vida e morte se confrontam nessa via de mão dupla. Pertencem ao mesmo caminho. Têm a mesma intensidade e propósito — provarem-se a si como senhores do Mundo/Periferia paulistana — ilusão real de todos nós, ao rés do asfalto.

Olá, hoje é dia de clássico aqui na Scenarium livros artesanais! E escolhi um dos livros de contos mais procurados pelos leitores que se amarram em narrativas urbanas, que oferecem características locais, facilmente identificáveis.

Publicado no ano de 2018, o livro caiu no gosto dos leitores por abordar a rotina periférica da capital paulistana, que é uma espécie de mundo-a-parte. Um universo rico em idiomas peculiares e atitudes ousadas.

Os personagens são os mais inusitados… a maioria é de sonhadores que acalentam desejos-secretos. Alguns querem viver no Centro. Outros querem mudar de cidade-país. Alguns atravessam a ponte e vão embora sem olhar para trás. Outro vão e voltam, regressando como filhos pródigos.

Nesse jogo de casas pares e ímpares, espio o cenário de casas altas e baixas, em construção ou reforma. Avisto crianças em bando, prontas para alguma travessura e adultos indo e vindo de seus afazeres diários. São personagens-personas, a bordo de suas vivências; peças de um quebra cabeças… e todas se encaixam porque estão todas enlaçadas pelo autor — um dos moradores —, que fez de seus leitores, um mero vizinho de todas essas casas numeradas.

Não precisa tocar a campainha, nem bater palmas no portão… basta entrar e conhecer a Casa escolhida e Boa leitura!

Plural  | Desejos

Obdulio Nuñes Ortega

acordei om o desejo explicito de preservar
a lembrança de meu último sonho
e como acontece quase sempre
me surpreendo com a minha presença física
diante do espelho que não me revela
não foi esse que sonhei…
quem é esse sujeito que me perdeu?
mergulhei o rosto na água fria espalmada
ventos do centro seco do mundo
o desumedece  em sorriso crispado
inicio mais um dia em que a vivência sonhada
se perderá pouco a pouco
até restar a sensação de que não vivi
permanente espectro de que ainda não nasci
morte a caminho cada vez mais próxima
curiosidade que aumentada de como será
já se não é em vida porque morremos a  cada a dia
quase um anticlímax uma sombra
o momento abrupto do desenlace
traz tanto encanto dramático que o imagino
tantas vezes sendo comum feito um passarinho
que para de voar fecha os olhos e cai de lado
saio em corrente de motor à diesel
no movimento incessante do trânsito
sou carregado enclausurado em grupo de desconhecidos
competindo todos pelo espaço asfáltico
carros em profusão como se houvesse uma fonte
inesgotável de  potenciais assassinos em série
fantasio que teremos o mesmo destino imediato
a mesma curva mal feita
o atropelo dos instantes impermeáveis
ao cósmico sentido de estarmos seres imortais
e desejo de ser mais
carrego em meu bolso temas
frases escritos sentenças poemas
proseio com o meu imaginário que bebe álcool
ou outras drogas só assim para entender
de onde vem tanta ilusão
desmedida assim como o caminho
que percorro sem rumo em busca de desejos
sinónimo de esperança…
o que sonhei mesmo?

Plural  | Sobre as aves noturnas

Evan,

Ficamos de conversar sobre Nighthawks, de Hopper… depois que me passou a sua impressão — o quanto você prefere senti-la, sem explicá-la.

Foi o que aconteceu comigo — uma fluição-fruição de sensações, apesar da artificialidade das paisagens e das poucas personagens. Há quadros em que há menos ainda, muitas vezes apenas uma, outras, nenhuma, que não suspeitam que estejam sendo observados, para o nosso prazer de voyaers.

Depois de sentir-me inebriado por olhar as telas de Hopper sem fazer elocubrações, comecei a especular sobre as figuras humanas que se interpõem nas miragens urbanas, rurais e marinhas. Comecei a criar histórias inspiradas pelos enredos aparentemente estanques.

A paralisia de feições e o que até o que poderia estar em movimento. É como se cessassem e dormissem na eternidade por obra de feitiçaria digna de conto de fadas. Não fosse o realismo explícito de seres autômatos por efeito das circunstâncias condicionantes pelo Sistema.

Em Nighthaws, estão recolhidas à gaiola iluminada. Pássaros empoleirados-solitários, no mesmo espaço, alcançados pelos olhares (que não se cruzam) uns dos outros. O entorno vazio de gentes, veículos e sensações, inspira um sentimento de isolamento do mundo que acabara pouco tempo antes. Alienígenas atacaram o Porto Pérola e todos sentiam que a guerra os havia alcançado, finalmente.

Os que estavam presentes, viviam os últimos instantes do mundo antigo. Não mais se consumiriam em suas rotinas. E a proporção numérica das personagens num local como aquele mudaria de quadro e passaria ser o inverso. E o único homem em cena seria um velho — d’alma. Capaz que desse as costas para o exterior por viver intensamente os dissabores de caminhar noites adentro em busca de sentido.

O casal eu imagino se sentir aliviado por não precisar inventar desculpas para se separar. Eventualmente os seus corpos terão as últimas noites de sexo juntos — mecanicamente. O homem alegará que se alistará e se for convocado, fugirá como o diabo da cruz. Passou um tempo na prisão, não permitirá que isso voltasse a acontecer. Conheceu outra dançarina no mesmo lugar onde em que conhecera a sua companheira. Não cometeria o mesmo erro de retirá-la da função. A sua nova aquisição continuará a trabalhar e lhe propiciará o bem-estar que merece. E a nova talvez até gostasse de apanhar como gosta de bater.

A mulher estava cansada de levar bordoadas. No começo, achava que fosse por ciúme. Gostava da emoção de estar ao lado de alguém “perigoso”. A cada caso que se envolvia percebia que eram homens como o seu pai, que igualmente batia na mãe em dias alternados, como se quisesse pegá-la desprevenida. Quando tudo parecia estar bem, o homem que foi seu primeiro, inventava uma desculpa para atacá-la. Quando a deflorou, passou a se sentir como se fosse mais uma amante de seu pai. Até que certo dia, uma faca de cozinha resolveu a situação. A sua mãe assumiu a culpa. Saber que a menina fora invadida por aquele monstro só não era pior porque ela não era sua filha de sangue.

Hopper colocou personagens marginais no centro da “ação”, numa cidade que é outra personagem, com aquela impressionante luz fantasmagórica que, para mim, era a sua marca registrada. Seu olhar de fotógrafo criou um realismo ambíguo que me seduziu. Eu o conheci pela Internet.

Ou, mais certamente, presenciara a sua visão de mundo em filmes, como Blade Runner ou nos filmes noirs que fizeram mais ricas as minhas noites de pássaro noturno preso a mim. As paisagens inóspitas para alguns, surgiam como amigáveis. Lembra como você achou estranho que ficasse horas preso numa mesma tela? Sorrio quando, por ter feito justamente o contrário, chamei a atenção de uma pessoa que mudou a minha vida. Como assim folhear tão displicentemente um livro com a produção de Edward Hopper?

Ela não sabia que o compêndio, emprestado por ela para a anfitriã que nos recebia naquele dia, já havia sido degustado por mim enquanto os outros convidados conversavam amenidades. Depois de tirar fotos da República que se abria à janela e das pessoas do estúdio, o magnífico álbum me chamou para conversarmos à parte. Não sei quanto tempo, mas talvez por uma hora mergulhei em viveres que se tornaram urgentes, enquanto os meus ouvidos se fecharam para o outro mundo. Até que à porta bateu a “dona” daquelas páginas que, mais adiante, publicaria novas páginas em minha vida. Mas essa história você já sabe.

Acho que nada ocorre por acaso, como não foi por acaso que Hopper tenha aportado em minha retina num novo século e reorientando a minha vida. Oitenta anos após de ter sido finalizado, continua a viver em mim, como viverá sem fim as suas personagens — materiais e fluídas — como também para vários outros seres abduzidos por sua realidade em descores.

Obdulio Nuñes Ortega

é autor de Curso de Rio, Caminho do mar

Criminoso

Por Obdulio Nuñes Ortega

Houve um tempo que evitava declarar ser escritor.  Não porque considerasse algo indigno ou vergonhoso, como se confessasse ser um ladrão. Apesar de sê-lo, também. Mas porque, sendo sonho de menino, não acreditava que o fosse, mesmo depois de certa idade e escrevendo muito. Intitular-me um artesão da palavra, se configurava um projeto para o futuro. Cometia o erro de acreditar que faltasse publicar um livro — objeto icônico — que carrega, por si só, o condão de incensar quem o assina, como “escritor”.

A publicação de meu primeiro projeto não me tornou escritor. Assumir a premência de ser um, sim. Consequência de uma necessidade basal — colocar para fora tudo o que me consumia, para não me envenenar com frases mal digeridas e morrer. Ainda que faça parte do contexto, morrer, matar, odiar, amar, construir, destruir, ser franco, saber mentir — viver-escrever.

Porém, para que produza meus textos, estabeleci uma rotina clandestina — roubo meu próprio tempo. Ajo como ladrão, muitas vezes, arrependido. Arrependimento que se dissolve assim que fico satisfeito com o resultado do furto. Já tentei me redimir. Mas quando percebo que minhas expressões vêm a calar fundo em quem as lê, meu receptador-receptor — um leitor, ao menos — produz-se um sentimento de compensação que me faz reincidir-honrar a persona que finalmente assumi.

Eu não apenas roubo tempo. Também rapto pessoas e seus afazeres, surrupio histórias que ouço ou presencio, acompanho passos de tantos, como se fosse um perseguidor. Esquartejo vivências de vários, para criar “Frankensteins” infames. Fuço vidas alheias para chegar a conclusões irreais. Assumo a identidade de outros, cometo falso testemunho. Por vontade confessa, sou um criminoso contumaz.

A tentar equilibrar os afazeres cotidianos, família e amigos, troco o relaxamento do descanso pelo artesanato da escrita. É um ofício vital, com mais erros do que acertos. Contudo, me garante acessar lugares recônditos de mim mesmo. Eu me surpreendo quase sempre em auto revelar quem sou-estou, ainda que tente esconder essa identidade por trás de artifícios verbais — conto do vigário. Entre ações delituosas que me fazem perder e tentativas arredias de me encontrar posso, finalmente, asseverar: sou escritor.

Obdulio Nuñes Ortega — nasceu a fórceps no começo de outubro de 1961, no centro de São Paulo. Ainda criança, começou a se mover para a Periferia, primeiro à Leste, depois ao Norte. Desde cedo, quis ser escritor.
É autor de REALidade, Confissões, Rua 2 e Curso de Rio, Caminho do Mar…

Vômito

Por Obdulio Nuñes Ortega

Não apenas do que comemos para manter o corpo funcionando, vivemos. Mas também de tudo o que recebemos de vibrações energéticas, sensações físicas, mentais e espirituais informações, olhares, toques, beijos, emoções, tapas, palavras, imagens, gostos, sentimentos, músicas, abraços, desejos, leituras, cheiros, vozes, sexo, silêncios, luz e sombra, amor e seu querido companheiro, o ódio e tudo mais que desenvolvemos como seres viventes-comunicadores-emissores-receptores neste planeta.

Porém, se não conseguirmos digerir do que nos alimentamos, a tendência é que expulsemos boca a fora o excesso, material e metaforicamente. Muito do que nos alimentamos, em vez de nos fortalecer, nos faz mal. E pode até matar. São venenos que colocamos goela abaixo ou acolhemos com nossos olhos, ouvidos, nariz, boca e pele, mente. Invadimos e somos invadidos por todos os meios. Ofendemos e somos ofendidos. Sensíveis, mortais, ainda assim vivemos a buscar a eternidade por um instante, que seja.

A nossa tendência à violência ultrapassa os campos pelos quais trafegamos. Impedidos de eliminar nossos inimigos, nos comportamos como bestas-feras, caçando vítimas pelas ruas virtuais da Internet ou presencialmente em praças, casas, repartições, lojas, chãos de fábrica, quartos de hotéis. Há já algum tempo, o suposto anonimato tem garantido que assassinemos ídolos e seres comuns, matemos reputações ou maltratemos incautos que são escolhidos por estarem em evidência. A meta é cancelar-trucidar-reduzir. Sobressairmos. O mundo virtual tem avançado à frente do mundo real e vis governantes de nações democráticas são eleitos por inocentes úteis e crentes de ocasião ou profissão.

Vomitamos misérias das quais somos alimentados desde que nascemos. Crescemos de vômito em vômito. Se não nós mesmos, outros vivem desses despojos. Vemos, mas não enxergamos o quão podre é nossa comida — leis, sociedade, educação, família, amigos, concidadãos — nossa vida. Ou como a transformamos nessa monstruosidade da qual dependemos e até adquirimos o gosto de depender. Como se fosse um ideal perseguido — um prêmio ao final de todo o nosso esforço. Por ódio pressentido, mas mal definido pelo que nos tornamos, violentamos o nosso ser em busca de coisas que se desvanecem em valor ao longo de nossa existência. O que nos resta é o que nos resta. No máximo, sobram manchas regurgitadas de nossa pequenez em nossas roupas rotas.

Obdulio Nuñes Ortega — viu a luz no fim do túnel pela primeira vez em 09 de outubro de 1961. Desde então, sempre que acha estar sob o sol, o mundo se cobre de pesadas nuvens ou vê soterrado seu entendimento sob massas de quase impenetráveis cavernas de obscurantismo. Nesse quadro de idas e vindas, altos e baixos, tenta encontrar o equilíbrio necessário para respirar. Começou e não terminou os cursos de História e Português na Faculdade de Filosofia, Letras E Ciências Humanas, da USP; se perdeu e se reencontrou outras tantas vezes e se tornou, para sobreviver, um microempresário na área de eventos que apresenta como característica principal o fato de ser uma atividade errática e fluídica, quase sessões contínuas de acampamentos ciganos em sequência de montagem e desmontagem. Formou-se em Educação Física pela UNIP para entender o corpo que carrega a sua alma. Quanto a sua alma é de escritor. Pela Scenarium Plural — Livros Artesanais, lançou REALidade, Rua 2 e Confissões, além de participar com contribuições para edições especiais do selo e para a Revista Plural, trimestral. Vivendo e morrendo em São Paulo, onde nasceu, busca encontrar a palavra decisiva ou a pergunta perfeita.

Em que momento um livro pode ser considerado pronto?

Por Obdulio Nuñes Ortega

Tenho certa compulsão em transformar todos os meus pontos finais em reticências… como se tivesse tanto mais a dizer e a voz ficasse embargada na garganta. Sinto impulso em prosseguir, mas chego a duvidar se a continuação do texto enriqueceria o tema ou apenas o dispersaria.

Ao invés de vomitar aquilo que quero expressar, costumo me perder nas explicações das pontas soltas deixadas no corpo do texto. Essa ação, às vezes, corrompe o argumento inicial com uma saraivada de locações, advérbios e complementos nominais que normalmente não chegam a lugar algum.

Ainda há as palavras… como se fossem adeptas de uma seita que propõe o amor livre e desbragado… começam a se associar livremente. Sem o devido controle de minha parte, mal consigo colocar um ponto final nessa orgia lexical.

Creio que o meu sofrimento estilístico tenha tido origem no longo tempo que fiquei sem escrever… foram vinte anos em que mantive a minha personalidade de escritor presa a amarras invisíveis.

Deixar de escrever foi uma decisão que tomei no meio do caminho da vida, da minha história. Me afastei da escrita como quem se afasta de um vício. Supus que compor histórias fosse um desvio ao qual deveria renunciar.

Imaginei que seria recompensado pela realidade… vivendo-a literalmente. Criei muitas regras para evitar cair novamente em tentação. O que não impediu que certos versos brotassem de minhas mãos em momentos de distração… reproduzindo em papel as passagens do sonho da noite anterior.

Após um momento decisivo senti que deveria deixar aflorar novamente o homem que escreve… e foi como voltar a respirar novamente… percebi, no entanto, que havia desaprendido a manejar as palavras.

De volta à escrita, vi crescer o medo de que a viagem pudesse se tornar um ritual tão egoísta, que acabaria transformando as pessoas ao meu redor em meros acessórios de um Criador-compulsivo e, com isso, afastei-me das conclusões, mergulhando em falsas justificativas e alongando-me em linhas e mais linhas.

Conclui, contudo, após alguns exercícios-ensaios, que terminar um livro-história-texto esbarra diretamente na pessoa que sou… deixar de escrever não foi fácil, mas foi bem menos difícil do que eu imaginava. A escrita sempre esteve em meu sangue, como doença que se recolhe no organismo-vivo.

Em um mundo em que finais se repetem ad aeternum, como homem e escritor eu sinto que nada é realmente definitivo… a vida sempre encontra um meio, talvez por isso seja desafiador enfrentar a palavra “fim”… mas sigo nessa busca — em cada composição —, tentando acrescentar o ponto final para dizer em voz alta “está pronto”. O sucesso, contudo, ainda não me abraçou.

Eventualmente

Por Obdulio Nuñes Ortega

Eu costumo usar o termo “eventualmente” muitas vezes. É um advérbio que evidencia algo que ocorre de maneira ocasional, fruto de uma casualidade ou incerteza. Que possivelmente aconteça, mas não é provável. Gosto do sinônimo “porventura”, que seria o contrário de desventura, ainda que represente muitas vezes também uma situação perigosa além de feliz. Talvez seja o caso de sabermos o quanto é perigoso ser venturosamente feliz.

A insistência em utilizar “eventualmente” se dá porque, apesar de a priori crer que nada seja por acaso, a teoria quântica é mais do que atraente para deixar de ser contemplada como possibilidade de escrita. O uso do “se” como caminho a ser tomado, geralmente sobre acontecimentos passados, é igualmente prerrogativa de um exercício de antecipação ou interpretação. Modificar o Tempo é uma tentação a qual muitos gostariam de ceder. Desejo de experimentar uma viagem temporal em que o Presente, o Passado e o Futuro são interdependentes e modificáveis.

Viajo nas palavras como verbos-mundos que terminam por decidir destinos de meus personagens e de nós mesmos, personagens que somos de algum louco escritor. Crer que nada seja por acaso também se aproxima da loucura. O “sim” talvez possa levar ao “não” e vice-versa.  Ou não. A matemática da vida por vezes não casa com a geometria dos corpos, sendo que os algoritmos atuam como as novas estrelas do nosso palco. O imponderável ganha voz em meus contos e poemas. As eventualidades e as incertezas marcam frequentemente a estrada que percorrem. A casualidade é permeada sincronicidade. São trilhas pelas quais caminho e que avivam ou matam a minha expressão. Porventura ou por desventura.

Apesar de parecer ficção, a própria realidade brasileira de hoje é baseada fortemente na interpretação dos fatos a depender do viés ideológico. Como tema de livro distópico, uma guerra do bem contra o mal em que os dois lados se arvoram no direito de empunhar a bandeira do que é certo, ainda que venham a distorcer a realidade. Eu mesmo, que brinco com o dito anarquista si hay gobierno, soy contra” — encontrei uma boa desculpa para combatê-lo Sua plataforma de atuação — de aniquilamento dos avanços sociais e desmonte da estrutura administrativa participativa — vai contra tudo o que acredito.

Seus apoiadores creem que travam a boa luta contra a corrupção e o solapamento moral da sociedade, ainda que saibamos que os critérios que utilizam, humanos que são, sejam um tanto permissivos, principalmente porque escolheram alegoricamente o caminho do mito. De início, apontam para a instabilidade civil por não acreditarem na igualdade social e por defenderem que o desnivelamento econômico seja abençoado por Deus.

De debatedor ideológico, o agente miliciano passou a ser uma ameaça para a estabilidade democrática do País, além de colocar em perigo a vida da população diante de uma grave crise sanitária. É a aplicação do jogo do “se” de maneira dolorosa. A Física Quântica a embaralhar as probabilidades eleitorais de 2018 e, se houver, a de 2022. A eventualidade de uma facada a decidir o destino de um país. Enfim, se conseguirmos ultrapassar todas as possibilidades contrárias de virmos a sucumbir ao destino ou ao acaso, porventura possamos ser felizes. Eventualmente.

Obdulio Nuñes Ortega é autor dos livros REALidade, Rua 2, Confissões e Curso de rio, caminho do mar — leia mais aqui

Artesão

Por Obdulio Nuñes Ortega

Corria o início dos Anos 80. Eu era aluno no curso de História e alimentava o desejo de me tornar escritor. O curso mais interessante para isso talvez fosse o de Português, porém o de História me atraía bastante.

O avanço da Tecnologia antecipava visões de uma futura sociedade computorizada. No entanto, eu acreditava que o professor seria sempre essencial. Já elaborava meios e maneiras de como transmitir a matéria aos meus futuros alunos.

O que me interessava desenvolver era a interação humana e encontrar uma maneira de não replicar modelos de competências padronizadas. Se pudesse nomear esse processo, seria: artesanato, com o objetivo com a valorização das individualidades.

Enquanto as matérias se sucediam, eu perdia a ingenuidade e o víeis “romântico” de meus ideais, ao mesmo tempo que mergulhava nas crises existenciais sazonais, iniciadas na adolescência. O Curso de História ficou pelo caminho e decidi investir minhas forças no de Português. Devido ao nascimento de minha primeira filha, troquei a vida acadêmica pela de trabalhador. Tentei ingressar na televisão, mas acabei por me estabelecer no mundo de eventos de entretenimento.

Cada realização se reveste de certa imprevisibilidade, que tento conduzir por uma via maleável de administração — como o escultor que trabalha com materiais que “sugerem” suas novas formas, cada evento é único, apesar de apresentar modelos fixos de operação.

Recentemente, tenho conseguido conciliar minha atividade profissional com a de escritor, que sempre foi um Norte, mesmo quando não escrevia. Encontrei-fui-encontrado por um projeto que percebi guardar em seu âmago a mesma ideia que eu gostaria de ver realizada como professor — vivenciar a escrita como uma experiência compartilhada de forma pessoal com quem eventualmente me lesse. Nada de estrutura massificante… a comunicação ao pé da letra-ouvido-olhar de cada leitor.

O Scenarium ao qual estou ligado, traz à cena contemporânea uma linguagem antiga-atual. A formatação dos livros produzidos pelo selo carrega o artesanato como padrão de veiculação. Os escritores e escritoras que dela participam acalentam o ideal de escrever como profissão de fé e afeto. Seus leitores percebem que a qualidade dos textos é o diferencial nesse projeto… que não se rende ao mercado que se acostumou ao produto rentável-descartável. Sua editora traz à cena a visão artesanal da palavra.

O tempo passou e o ciclo se completou. Quando ainda estava no curso de História, comecei a escrever para jornais do grêmio estudantil. Um dos meus poemas foi censurado por carregar uma palavra que, à época, era considerada um palavrão. Não desisti de colocá-la, já que constituía o cerne-resumido que queria expressar:

“Amar como um artesão – com arte e tesão…”.

Cartas à Gilka

Gilka Machado

biografia

Mariana Gouveia

Carta à Gilka Machado

Obdulio Nuñes Ortega

A Poeta que amava o amor