Bambina,
Enquanto te respondo ouço I’am not the Only one, na voz de um cantor coreano e revisito meu passado. Lua de papel fez-faz isso comigo e agora os três livros que compõem a história me observam no canto da mesa — ou eu a eles — e penso na sua missiva e nos personagens que você cita nela. Você sabe do meu carinho por Alexandra e como sua personagem me tocou. Não sei se foi empatia ou por que em algum momento me comparei com ela.
Eu fui Alex. Embora soubesse exatamente o que estava sentindo e encarasse isso de forma natural — até certo ponto — me vi envolvida por uma Raíssa.
Ana era esse trovão azul que você sentiu em Raíssa e era imensa, cobria qualquer lugar que estivesse com sua presença. Ana era real e era de Marte e eu? Ah, eu era a menina careta criada na roça, com tantas coisas embutidas dentro de mim, criada nos preceitos da igreja católica. Só por isso você pode imaginar que tudo fora dos “padrões” convencionais era considerado pecado por minha família.
A palavra pecado era pronunciada tantas vezes em casa que até alguns pensamentos me levava a rezar as 10 ave-marias — que o padre que visitava a fazenda duas vezes por mês nos impunha — antes mesmo de confessá-los e até isso, era considerado pecado.
Sempre relutei com os rótulos que designa a opção sexual de alguém. Lembro-me de que algumas vezes, por estar sempre de macacão era chamada de ‘sapatão’ pelos colegas de escola, já no ensino médio. Na época, nem entendia direito a palavra. Eu havia chegado recentemente da roça, criada distante de um grande centro e não sabia grandes coisas sobre o que acontecia fora das cercas da fazenda do meu pai. Mas sempre achei que o amor não precisava de rótulos ou jargões. Nem de sexo determinado… Mas, não ousava falar.
Talvez, por isso, fui compreensiva com Alex, no início. Eu era igual. Podada, medrosa e sem coragem. Talvez usasse a educação de uma família tradicional goiana para justificar o medo quando me vi encantada com Ana.
Mas, de repente, minha voz ganhou coragem e foi como se pulasse de um trapézio e dissesse: que se dane o mundo e os convencionais. Antes disso, havia engravidado do “primeiro namorado” na cidade grande e ele não reconheceu o filho, que morreu ao nascer. Me transformei em tantos personagens dos livros que lia que me perdia nos sentimentos.
E foi aí que o universo me ligou à Ana. Tanto para mim, quanto para ela era a primeira vez desse amor feminino que nos unia. Ela era mais corajosa do que eu e usávamos a poesia para nos fortalecer. Mas, ainda assim, ela era demais para mim. Eu só me sentia segura dentro de quatro paredes e me refugiava no medo de que minha família descobrisse o que eu era. Mas, o que eu era? A filha que ficou responsável pelos irmãos mais novos depois que a mãe morreu e que as irmãs mais velhas colocaram para fora de casa quando descobriram que eu amava outra mulher citando que eu estragaria meu futuro?
A mulher que sabia o que queria, sem perder a responsabilidade que me foi exposta tão cedo?
Para elas, eu era a rebeldia da adolescência em pessoa e para mim, eu era a liberdade que pensava em apenas amar. Sem rótulos ou culpa. Queria ser apenas a mulher que amava. Não a bissexual, a sapatona ou outras linguagens de gêneros que surgiram depois, porque para mim, não era o gênero que me importava. Mas o que eu estava sentindo.
Embora já tivesse tido namoros com rapazes e tivesse até engravidado de um, naquele momento, o amor me movia em outra direção. Ana. De Marte.
Hoje, parece uma história de ficção e Ana era tanto que o nosso lugar ficou pequeno e ela ganhou asas. Viajou para o exterior e eu fiquei só.
O envolver com outra mulher foi considerado por minha família como coisa de adolescente. Ana era a ‘culpada’ por se aproveitar de mim e mesmo assumindo tudo fui ignorada. Acho que sou até hoje.
Então, quando li Alex nas suas palavras eu quis abraçá-la. Até certo ponto eu a entedia… Não é fácil quebrar algumas barreiras. É preciso coragem e talvez, Alex não tenha conhecido alguém para ser exemplo.
Mas, quando Anne na sequência da sua história, vi ali meu reflexo mais puro… eu respirei várias vezes ao ler sobre Anne. Não havia como não me ligar a ela. A Alex era “meu passado” rabiscado em gestos tímidos e palavras secretas. Visão de uma cidade grande que não me cabia, mesmo em alguns momentos me sentindo tão pequena, sem encaixe no mundo.
Anne, possuindo o olho das certezas era eu descobrindo que podia falar abertamente para o homem ao meu lado e que eu escolhi para ser meu companheiro e ele entendia e era cúmplice da história que se desenhava para mim, ouvi dele que eu não precisava de definição nem de desculpas para viver o que queria.
Talvez, faltou apenas à Anne — diferente de mim — o marido que a escutasse e aprendesse a dividir os sentimentos. Ele me fez grande e maior do que a cidade e seu povo que estranhava tudo. Ele segurou minha mão e me seguiu quando Ana voltou.
Em muitos momentos, também me senti como Anne minguando, daí veio um sol que brilha quando a lua em seu estado minguante ainda se prepara para se esconder e comecei a ser dona de mim. Me reinventei e vivi o meu amor de livro. Um amor que conto em Colcha de Retalhos. Sem rótulos, sem pressão, sem denominação. Apenas amor.
Quando você cita sobre os elementos que as unia eu percebo que é o mesmo elemento que me ligou a elas e à minha história.
Acho que há muitas Alexandras, Raissas e Annes por aí. Muitas, escondidas, como eu fui por um tempo. E acho que a ficção me colocou dentro do universo pleno de ser quem eu sou sem meias medidas. Acho também que me fiz pertencer no mundo sem magoar ninguém.
Hoje, Ana se foi e sou grata a ela por tudo que vivi. Ainda vivo inquieta dentro das palavras dela e agora sei a qual universo eu pertenço...
O meu…

Mariana Gouveia
É autora do romance Colha de Retalhos