Houve um tempo que era de medo. Bastava o céu fechar as cortinas e o escuro invadir o meu quintal que esse sentimento anestesiante reinava absoluto no meu corpo, por causa da dor. Eu tirava os chinelos e pisava no chão, para que a terra me fizesse firme ao caos que se estabelecia em mim. A dor é um bicho estranho e noturno. Mesmo quando eu estava entre os corredores, amparada por agulhas e fios… o medo surgia, como um fantasma. A dor era feito a noite sem lua-estrela… E não havia como não associá-la ao que a dor fazia comigo… Um vácuo, tipo guerra em que a explosão é apenas o medo de doer. E doía tanto. Havia noites em que doía tudo.
Mas, eu já fui amante da noite. Quando caminhei pelas ruas escuras. Não me lembro de me sentir tão segura quanto naquele tempo. O moço que cuidava do cemitério me levava pelas mãos, nas madrugadas mornas e era o meu guia. Passo a passo do meu lado… Voz de amparo e de cuidado. De um lado, o rádio onde eu expunha meus sonhos e do outro, o cemitério. Eu era a amante da noite que era o lugar das sombras do muro que me acolhiam sob os olhos atentos do moço que cuidava do repouso… a última morada de muitos.
Mesmo lembrando que antes da dor, o que me acalentava a alma era a rua estreita, que me levava mata adentro e no descampado, onde eu via as estrelas, a via láctea e suas constelações. Foi ali que a noite se tornou minha amiga. Eu era a menina que deitava no tapete debaixo das estrelas e sabia de cor todas as constelações. Conhecia os atalhos e era guiada pelos vagalumes.
Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias…
Em algum momento você teve a sua sanidade questionada?
Maria, personagem principal de Corredores descobre que não existe limite entre a sanidade e a loucura e que enlouquecer aos olhos dos outros, poderia ser a única maneira de preservar-se…
Olá,
Hoje é dia de sugestão de leitura aqui no blogue! E vou aroveitar a leitura comentada de março lá no instagram para indicar: Corredores, codinome: loucura, de Mariana Gouveia, que é um livro que exibe em suas páginas um elemento drásticamente contemporâneo: o abuso que crianças sofrem dentro de suas casas. Um lugar que deveria representar segurança e que se revela um verdadeiro pesadelo para meninas e meninos.
Não é atoa que é nos quartos residem monstros que se escondem dentro de armários ou debaixo das camas…
Precisamos estar atentos aos sintomas. Uma criança, vítima de abuso parental, muda o comportamento de maneira repetina: passa de criança calma e tranquila para alguém irritadiço ou o contrário disso. Demonstra medo e incômodo quando na companhia de um adulto — geralmente o seu agressor. E há casos de descontrole dos esfíncteres.
Muitas crianças — como a personagem de Corredores — são desacreditadas pelos adultos, que acham impossível que o adulto apontado por elas, seja capaz de tal gesto…
Na ficção escrita por Mariana Gouveia, conhecemos Maria, que ao atingir a puberdade, atrai os olhares do namorado da mãe: figura confiável e respeitada por todos. Ele se defende, acusando-a de loucura e convence: a mãe, a vizinhança e a própria Maria que começa a duvidar da sua sanidade.
É uma história forte, densa e que vai de te deixar completamente sem fôlego. A escrita poética de Mariana Gouveia te transforma e emociona. Você não vai conseguir tirar os olhos de Maria, que foi largada na loucura do outro sem ao menos ser ouvida. Teve seus sonhos amassados e jogados no lixo, como se fosse um papel velho. A esperança perdeu-se em meio aos gritos de socorro que foram abafados dentro de um corredor vazio sem qualquer chance de vida.
“Eu enquanto favelada, eu enquanto vereadora, que sei que desde a minha época de pré-vestibular comunitário, quando tive que fazer mais pré porque as escolas da região não me davam condições de tá nas Universidades Públicas, já sabia que isso era político”.
Marielle Franco 1979 — 2018
Cinco anos se passaram… e a pergunta ressooa, sem respostas. Foi-se a Mulher. Mas não foi em vão. Sua luta se tornou herança de muitas outras…
E neste 14 de março (que soube ser o dia nacional da Poesia) convido você a leitura dos textos escritos ontem e hoje por encomeda para um projeto que é memória para que a gente nunca se esqueça que a luta continua por ela e por todas nós…
Acabou o Carnaval (eu acho) e aterrisamos em Março… espero que esteja pronto para as novidades. Começaremos com um novo e delicioso encontro com o livro Corredores, codinome: loucura… da querídissima Mariana Gouveia. Eu e a Suzana Martins já estamos ansiosas para comentar o livro que conta a história da jovem Maria, uma menina vítima de abuso dentro de casa e que ao gritar e espernear, denunciando o padrastro, acaba sendo levada para um Hospício, onde o horror ganha nova definição.
O romance, publicado em 2018 trata a loucura da jovem como a única justificativa possível para denúncias feitas e consideradas inadequadas pela própria mãe, afinal, o homem que Maria acusa, jamais seria capaz de tal ato.
Corredores é o cenário da história de Maria… que é trancada num hospício pela própria mãe após ser vítima de abuso sexual dentro de sua própria casa. Loucura atestada, a solução é entregá-la aos cuidados de Mathilda — uma mulher que não enxerga pessoas, apenas números numa folha mapeados pela condição determinada por ela e, assegurada pelo Estado que só quer se livrar de seus “doentes”.
Olho no calendário na parede da cozinha e vejo as marcas nele. Com círculos em algumas datas marquei dias que vivi. O dia em que a suculenta deu flor pela primeira vez. Se bem, que alguns ficarão na memória para sempre. Estão marcadas as trocas do gás — foram 6 ao longo do ano. O dia da super lua, do eclipse e do aniversário do Chiquinho.
Parece que foi ontem que janeiro começou e tudo que eu queria era renovar a esperança. E já é dezembro de novo. E quais os planos que fiz e não cheguei a cumprir? Eu pedi e desejei saúde, dias felizes, mais amor, respeito… E não dá para não rir das frases clichês. Nem ouso fazer promessas… Elas ficam suspensas em meses adiados. Percebi isso assim que me tornei adulta.
Eu lembro dos trabalhos que fiz… Dos que tive de interromper por algum motivo e da saudade sentida dos que foram.
Quando eu trocar a folhinha velha pela nova, o ano de 2022 será passado e não posso dizer que sentirei saudades. Que ano estarei abandonando quando 31 de dezembro cerrar o dia?
Só me lembrarei dos banhos na chuva, do ipê que floriu cinco vezes nesse ano e das brincadeiras com os sobrinhos.
Um dia se intercala no outro e, de repente, será um ano novo, com suas nuances de velho, de antigo, de lembranças. Mas ainda restam alguns dias para viver — antes de abandonar esse 2022 de caos e esperar pelo 2023 com a esperança renovada.
Antes, irei ali… onde me chamaram para brincar de amarelinha e eu aceitei a brincadeira no ato e tenho uma pedra em mãos. Vem comigo? E traga uma pedra e muita disposição.
Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias…
Eu sempre fui a menina das nuvens… quando minha mãe me chamava e eu não respondia, ela logo dizia: está com cabeça nas nuvens? Lembro-me da primeira vez que vi um desenho fora das nuances que as nuvens fazem-trazem ao pôr do sol ou ao nascer.
Era um cachorro que corria atrás de um coração. O coração nuvem ia pulando entre outras nuvens fofas e o cão não alcançava. Parecia o livro que eu desenhava.
Mas o vento lá em cima dissipou as nuvens e eu fiquei apenas com a sensação de um pelo fofo na mão. Quando não tinha mais nada para fazer, deitava-me na grama, para além do curral e ficava a espiar o céu.
Quando cresci, passei a quarar nuvens como meu pai dizia. Os lençóis brancos, de linho, no jirau de madeira pareciam nuvens bailando com o vento. Bastava amanhecer e meus olhos buscavam o céu. Era flecha, em alguns momentos, um anjo, um cupido, um jacaré e cães… ora, buldogue, ora poodle. Sempre fui uma especialista em ver corações nas nuvens. Alados, correndo com o vento… Em viagens, em tardes quase noites, em amanheceres… o pote de algodão se abria e meus olhos buscavam a formação. Às vezes, tão sutil… em outras, tão escancaradas que parecia que alguém, lá de cima, mexia o dedo e o coração se formava.
Tempos depois, quando ouvi Jota Quest cantando sobre: ‘Posso brincarde descobrir desenho em nuvens,posso contar meus pesadelose até minhas coisas fúteis…’ descobri que eu não era única. Às vezes, os desenhos formam letras como se fossem mensagens cifradas. Em outras, palavras inteiras que me lembram cartas. Já vi pássaros em voos rasantes e potes de ouro entre arco-íris.
Certa vez, em uma das viagens pelo interior do estado paramos em uma estrada no meio do nada. Achei que estivesse no céu… as nuvens pairavam sobre a estradinha e um coração me seguia, quase ao alcance das mãos. A impressão é que eu estava dentro de um pote de algodão. Minha mão tocava as nuvens quase a um palmo do chão.
Senti como se estivesse ganhando um abraço do céu.
Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias…
Lembro-me do barulho dos meus pés pisando a areia fina que contornava o rio à poucos passos da casa e durante a noite.
Quando tudo se aquietava eu ficava ouvindo o barulho da água dançando com as margens. Era a hora que eu sonhava com o barco que me levaria até o mar? Em minha cabeça de menina uma pergunta martelava: será que se eu seguir esse rio, percorrendo as curvas eu chegaria até o mar? Parecendo adivinhar meus pensamentos, minha mãe me mandou sentar ao redor da mesa grande debaixo do pé de sete copas… revistas velhas, tesoura e foi dobrando uma folha de revista.
A ponta de cima até o centro do papel. A ponta de baixo levantada.
Suas mãos foram dobrando aqui, forçando a dobra ali e no centro da mesa um barquinho pousou… A companhia dos meus irmãos encheu a mesa… e eu quis colocar meu barco no rio, para testar, colocando nele a esperança e a fantasia de sair vida afora até conhecer o mar. Mas, assim que o barquinho foi colocado no rio, a correnteza o carregou e poucos metros abaixo se desfez lentamente. Um outro, foi um pouco mais longe e sumiu debaixo da água. Mas um, feito com outro tipo de papel — mais duro — seguiu a curva e sumiu levado pela correnteza. Do alto de uma pedra consegui avistá-lo até onde meus olhos conseguiram ver.
Minha mãe, vendo as nossas expectativas ali, com alguns barquinhos ainda em mãos, disse que os sonhos eram iguais aos barquinhos. Uns, eram muito frágeis e no primeiro obstáculo se desmanchavam. Outros, duravam algum tempo, mas diante de algumas dificuldades, eram desfeitos — talvez para dar lugar a outros sonhos — e só o sonho baseado em um sentimento forte, seria realizado. Não importa o tempo, nem as dificuldades… de uma forma ou de outra, o barco encontra um porto seguro onde atracar. Eu ainda não conheci o mar. E o meu barco de papel que estava guardado, se perdeu nas mudanças da vida.
Quando o meu filho completou 11 anos… o ensinei a dobrar o papel para confeccionar o seu barquinho de papel. Repeti as mesmas frases que minha mãe me disse. Falei dos sonhos, da importância de tê-los e das dificuldades que poderiam surgir quando buscamos esse sonho. O tempo passou, e um dia, seguindo o seu sonho, meu filho me ligou à beira do mar. Ouvi o barulho das ondas, o som do vento e o eco dos passos dele na areia… sua voz sendo parte do mar que toda vida sonhei ouvir:
— Mãe, o barquinho enfrentou a onda e está lá, no meio do mar. Os sonhos se realizam, mãe.
Não era eu ali, mas eu compreendi o que minha mãe quis dizer: muitas vezes, os nossos sonhos se realizam nos nossos filhos.
Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias…
A carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou.
Antecipei a primavera dentro do verão. Replantei as sementes todas para quando o equinócio chegasse. A alma vaga dentro da solidão de uma estação inteira.
Em uma única flor, colhi a Primavera camuflada em sementes.
Mariana Gouveia… pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias…
Hoje é dia de Suzana Martins — autora do livro (in)versos — escolher 03 poemas… E a mulher-poetas das marés escolheu o livro O Lado de dentro, da poeta-pássaro-mulher: Maraina Gouveia… que nos proporciona belos vôos por suas sentimentalidades
Boa leitura!
Meu Quintal
O dia estava disfarçado de Chuvas. Ave, reza…
e eu caí para dentro de sua sede Fui saliva corpo adentro. Ave, bem…
Te vi… tal qual textura no espelho na estranheza das estações no desaguar das nuvens.
Ave, sou!
Me permita
Me permita, …arrumar o canto direito de mim, onde teus vazios e silêncios moram.
Quero ajeitar tua presença. Deixar em um lado …onde não faça tanta falta E nem seja necessário trocar de lugar cada vez que tua Ausência doer.
Vou te colocar pela metade, até quando se esvair inteiro ou quando já nem lembrar mais que Você estava ali. Queria te trocar por — outra — essência, outra cara, outro gosto! Outra lembrança.
Outra flor… mas, todo sol lembra você. E aqui é sol o tempo inteiro — suor… E todo suor lembra sal E todo sal… me lembra você!
Me permita te trocar de prateleira. Te colocar na mais alta, onde eu não alcanço o segredo guardado…
Me permita jogar a chave fora. Para lembrar menos: você.
Sísmica
Alguma coisa acontece no interno do onde Do lugar que te escondo para depois te buscar
É um quase um abalo é química Sísmica, terremoto intenso te amar
O peito abala, embala percebe quando você está Desmorona meu teto me torno objeto teu
Um chão que se abre escombro queria seu ombro
Mas o epicentro foi fatal e eu me lembro sempre do emocional encontro entre um nome e um homem…
Entre a palavra e o poeta e a fresta. A porta aberta e a escala de Richter interno em mim.
mosaicum (poesia e prosa) casa de vidro (contos) as estações (poesia) barquinho de papel (prosa) manifesto-me (crônicas) nas nuvens (poesia e prosa) o ano do gato (contos) em mãos (correspondência)
livro 01
Organizado por Lunna Guedes, essa edição convidou os autores a poesia e a prosa… os autores: Adriana Aneli, Nirlei Maria Oliveira, Flávia Côrtes, Obdulio Nunes Ortega, Caetano Lagrasta, Anna Carriero, Lígia Libaneo, Anna Clara de Vitto, Yara Fers, Joakim Antônio, Isabel Rupaud,Roseli Pedroso, Mariana Gouveia.
O resultado são poesias em páginas azuis e uma narrativa que se oferece enquanto trovão no azul…
livro 02
Quem conta um conto, aumenta um pouco e foi partindo dessa premissa que Lunna Guedes convidou Adriana Aneli, Carol Favret, Flávia Côrtes, Isabel Rupaud, Mariana Gouveia e Obdulio Nuñes Ortega para escrever narrativas a partir de um conto — o fio condutor de Casa de vidro, tão frágil quanto as emoções dos personagens que cicularm de conto em conto…
livro 03
Um livro de poesias que reúne 04 poetas da Scenarium Flávia Côrtes, Mariana Gouveia, Nirlei Maria Oliveira e Suzana Martins e suas estações da pele, da alma, do cuore e da alma…
livro 04
A idéia para esses cadernos de contar histórias foi uma dobradura colocada por uma criança numa poça d´água — despertando memórias. Veio o convite a prosa: Adriana Aneli, Bianca César, Isabel Rupaud, Lua Souza, Mariana Gouveia, Rozana Gastaldi Cominal e Suzana Martins aceitaram conduzir seus barquinhos de papel por esse mar de páginas…
livro 05
Lunna Guedes teceu o convite, uma crônica por semana, propondo os temas que cada autor levou na direção que quis, propiciando um olhar para muias paisagens…
Quando crianças, ao olhar para as nuvens, vemos desenhos de gatos, cachorros, coelhinhos, dragões… dizem que é o imaginário infantil. Mas e nós, adultos? O que vemos?
Isabel Rupaud, Lua Sousa, Mariana Gouveia, Nirlei Maria Oliveira, Rozana Gastaldi Cominal responderam com poesia e prosa…
livro 07
A idéia veio de Edgar Allan Poe e seu conto O gato preto que foi publicado em uma edição do Saturday Evening Post em agosto de 1843.
O conto é um estudo da psicologia da culpa…… e foi apresentado durante o encontro do Clube de Escrita da Scenarium…
Sete autores, um para cada gato ou seria para cada vida?
Com ilustração de Valerie David Cats e poesias de Flávia Côrtes, Jorge Luís Borges, Patricia Highsmit, Rozana Gastaldi Cominal e Wislawa Zymborska.
livro 08
Uma troca de correspondência iniciada por Lunna Guedes… que escreveu ao vento e esperou por respostas para iniciar a aventura em linhas entre diferentes geografias, anatomias…
Responderam ao aceno: Flávia Côrtes, Mariana Gouveia, Rozana Gastaldi Cominal e Suzana Martins…
Enquanto te respondo ouço I’am not the Only one, na voz de um cantor coreano e revisito meu passado. Lua de papel fez-faz isso comigo e agora os três livros que compõem a história me observam no canto da mesa — ou eu a eles — e penso na sua missiva e nos personagens que você cita nela. Você sabe do meu carinho por Alexandra e como sua personagem me tocou. Não sei se foi empatia ou por que em algum momento me comparei com ela.
Eu fui Alex. Embora soubesse exatamente o que estava sentindo e encarasse isso de forma natural — até certo ponto — me vi envolvida por uma Raíssa.
Ana era esse trovão azul que você sentiu em Raíssa e era imensa, cobria qualquer lugar que estivesse com sua presença. Ana era real e era de Marte e eu? Ah, eu era a menina careta criada na roça, com tantas coisas embutidas dentro de mim, criada nos preceitos da igreja católica. Só por isso você pode imaginar que tudo fora dos “padrões” convencionais era considerado pecado por minha família.
A palavra pecado era pronunciada tantas vezes em casa que até alguns pensamentos me levava a rezar as 10 ave-marias — que o padre que visitava a fazenda duas vezes por mês nos impunha — antes mesmo de confessá-los e até isso, era considerado pecado.
Sempre relutei com os rótulos que designa a opção sexual de alguém. Lembro-me de que algumas vezes, por estar sempre de macacão era chamada de ‘sapatão’ pelos colegas de escola, já no ensino médio. Na época, nem entendia direito a palavra. Eu havia chegado recentemente da roça, criada distante de um grande centro e não sabia grandes coisas sobre o que acontecia fora das cercas da fazenda do meu pai. Mas sempre achei que o amor não precisava de rótulos ou jargões. Nem de sexo determinado… Mas, não ousava falar.
Talvez, por isso, fui compreensiva com Alex, no início.Eu era igual. Podada, medrosa e sem coragem. Talvez usasse a educação de uma família tradicional goiana para justificar o medo quando me vi encantada com Ana.
Mas, de repente, minha voz ganhou coragem e foi como se pulasse de um trapézio e dissesse: que se dane o mundo e os convencionais. Antes disso, havia engravidado do “primeiro namorado” na cidade grande e ele não reconheceu o filho, que morreu ao nascer. Me transformei em tantos personagens dos livros que lia que me perdia nos sentimentos.
E foi aí que o universo me ligou à Ana. Tanto para mim, quanto para ela era a primeira vez desse amor feminino que nos unia. Ela era mais corajosa do que eu e usávamos a poesia para nos fortalecer. Mas, ainda assim, ela era demais para mim. Eu só me sentia segura dentro de quatro paredes e me refugiava no medo de que minha família descobrisse o que eu era. Mas, o que eu era? A filha que ficou responsável pelos irmãos mais novos depois que a mãe morreu e que as irmãs mais velhas colocaram para fora de casa quando descobriram que eu amava outra mulher citando que eu estragaria meu futuro?
A mulher que sabia o que queria, sem perder a responsabilidade que me foi exposta tão cedo?
Para elas, eu era a rebeldia da adolescência em pessoa e para mim, eu era a liberdade que pensava em apenas amar. Sem rótulos ou culpa. Queria ser apenas a mulher que amava. Não a bissexual, a sapatona ou outras linguagens de gêneros que surgiram depois, porque para mim, não era o gênero que me importava. Mas o que eu estava sentindo.
Embora já tivesse tido namoros com rapazes e tivesse até engravidado de um, naquele momento, o amor me movia em outra direção. Ana. De Marte.
Hoje, parece uma história de ficção e Ana era tanto que o nosso lugar ficou pequeno e ela ganhou asas. Viajou para o exterior e eu fiquei só.
O envolver com outra mulher foi considerado por minha família como coisa de adolescente. Ana era a ‘culpada’ por se aproveitar de mim e mesmo assumindo tudo fui ignorada. Acho que sou até hoje.
Então, quando li Alex nas suas palavras eu quis abraçá-la. Até certo ponto eu a entedia… Não é fácil quebrar algumas barreiras. É preciso coragem e talvez, Alex não tenha conhecido alguém para ser exemplo.
Mas, quando Anne na sequência da sua história, vi ali meu reflexo mais puro… eu respirei várias vezes ao ler sobre Anne. Não havia como não me ligar a ela. A Alex era “meu passado” rabiscado em gestos tímidos e palavras secretas. Visão de uma cidade grande que não me cabia, mesmo em alguns momentos me sentindo tão pequena, sem encaixe no mundo.
Anne, possuindo o olho das certezas era eu descobrindo que podia falar abertamente para o homem ao meu lado e que eu escolhi para ser meu companheiro e ele entendia e era cúmplice da história que se desenhava para mim, ouvi dele que eu não precisava de definição nem de desculpas para viver o que queria.
Talvez, faltou apenas à Anne — diferente de mim — o marido que a escutasse e aprendesse a dividir os sentimentos. Ele me fez grande e maior do que a cidade e seu povo que estranhava tudo. Ele segurou minha mão e me seguiu quando Ana voltou.
Em muitos momentos, também me senti como Anne minguando, daí veio um sol que brilha quando a lua em seu estado minguante ainda se prepara para se esconder e comecei a ser dona de mim. Me reinventei e vivi o meu amor de livro. Um amor que conto em Colcha de Retalhos. Sem rótulos, sem pressão, sem denominação. Apenas amor.
Quando você cita sobre os elementos que as unia eu percebo que é o mesmo elemento que me ligou a elas e à minha história.
Acho que há muitas Alexandras, Raissas e Annes por aí. Muitas, escondidas, como eu fui por um tempo. E acho que a ficção me colocou dentro do universo pleno de ser quem eu sou sem meias medidas. Acho também que me fiz pertencer no mundo sem magoar ninguém.
Hoje, Ana se foi e sou grata a ela por tudo que vivi. Ainda vivo inquieta dentro das palavras dela e agora sei a qual universo eu pertenço...
E chegamos a Setembro, um dos meus meses favoritos no calendário dos humanos. Para quem não sabe, antigamente, era o sétimo mês do calendário antigo. Daí o nome setembro – september ou septembre… Foi o que serviu de inspiração para o título do meu Diário das 4 estações — Setpum, publicado em 2016… ao lado de Cadedos abertos, de Mariana Gouveia e A construção da primavera, de Adriana Aneli que fará parte do primeiro kit de primavera da Scenarium
Ah, as Estações do ano. Como sabemos: são quatro: primavera e verão, outono e inverno. Ciclos completos que Vivaldi musicou.
A primavera é a mais conhecida. A minha favorita é o Outono.
Mas ouvir as quatro em sequência, pela manhã, em um dia de sol após uma semana cinza, é particularmente saboroso.
E eu recomendo… e deixo a sugestão para você que é assinante do Clube do livro da Scenarium para que faça isso na companhia do nosso livro de Agosto:
As estações
Reunimos 04 poetas: Flávia Côrtes e Mariana Gouveia, Nirlei Maria Oliveira e Suzana Martins e em seus sagrados versos dedicados As estações da pele e da memória, do cuore e da alma… nos conduzem por uma trama onde corpo-alma-memória-e-cuore são uma matéria-una.
O livro foi enviado aos assinantes, mas para quem não faz parte do clube, pode encomendar a partir de hoje o seu exemplar.