Marielle… presente!

“Eu enquanto favelada, eu enquanto vereadora, que sei que desde a minha época de pré-vestibular comunitário, quando tive que fazer mais pré porque as escolas da região não me davam condições de tá nas Universidades Públicas, já sabia que isso era político”.

Marielle Franco
1979 — 2018

Cinco anos se passaram… e a pergunta ressooa, sem respostas. Foi-se a Mulher. Mas não foi em vão. Sua luta se tornou herança de muitas outras…

E neste 14 de março (que soube ser o dia nacional da Poesia) convido você a leitura dos textos escritos ontem e hoje por encomeda para um projeto que é memória para que a gente nunca se esqueça que a luta continua por ela e por todas nós…

Boa leitura…

Três poemas de
Adriana Aneli

Um grito…

Uma missiva para Marielle

Dois poemas de
Nic Cardeal

Uma crônica de
Obudlio Nuñes Ortega

Leitura comentada  | Corredores, codinome: loucura

Olá,

Acabou o Carnaval (eu acho) e aterrisamos em Março… espero que esteja pronto para as novidades. Começaremos com um novo e delicioso encontro com o livro Corredores, codinome: loucurada querídissima Mariana Gouveia. Eu e a Suzana Martins já estamos ansiosas para comentar o livro que conta a história da jovem Maria, uma menina vítima de abuso dentro de casa e que ao gritar e espernear, denunciando o padrastro, acaba sendo levada para um Hospício, onde o horror ganha nova definição.

O romance, publicado em 2018 trata a loucura da jovem como a única justificativa possível para denúncias feitas e consideradas inadequadas pela própria mãe, afinal, o homem que Maria acusa, jamais seria capaz de tal ato.

Corredores é o cenário da história de Maria… que é trancada num hospício pela própria mãe após ser vítima de abuso sexual dentro de sua própria casa. Loucura atestada, a solução é entregá-la aos cuidados de Mathilda — uma mulher que não enxerga pessoas, apenas números numa folha mapeados pela condição determinada por ela e, assegurada pelo Estado que só quer se livrar de seus “doentes”.

 Anota aí, dia 24 de março, às 19h30

Conto, novela ou romance?

Quando eu decidi virar a página da minha realidade, migrando da psicanálise para a literatura… eu tinha uma certeza: iria escrever um romance. Mas, quando se pronunciei essa frase em voz alta, nem desconfiava que existia um sem-fim de diretrizes penduradas nela.

Tem gente que pensa naqueles livros intermináveis e pesados… com não sei quantas mil páginas. Enquanto outros, lembra-se daquelas leituras — obrigatórias — do tempo do colégio. Livros esquecidos em prateleiras… Eu pensava apenas na narrativa e no desafio que seria me dedicar a esse projeto-de-vida.

Mas, para quem está atracando na realidade literária agora, vale prestar atenção no que diz o vasto universo da literatura a respeito dos diferentes tipos de gêneros disponíveis: conto, novela e romance.

Vamos lá…

Conto

É uma narrativa curta que apresenta todos os elementos tradicionais e essencias de uma boa história: personagens, tempo, espaço, enredo e que se encaixa em qualquer gênero, como: ficção científica, policial, fantasia…

Se alguém me perguntasse, por onde eu começo: eu não titubearia em dizer: pelo conto porque é uma excelente maneira de um Autor se inaugurar no mundo literário. Você terá menos trabalho e conseguir ver o resultado da sua narrativa num espaço curto de tempo. Não quer dizer que será fácil e vai dominar o gênero em dois paragráfos. Mas te dará a exata noção das suas dificuldades e aprenderá com elas.

Uma explicadação rápida para você saber onde está pisando: o conto se caracteriza por apresentar um único conflito… o que permite que a gente se dedique a um acontecimento relevante e um clímax.

Nos cursos que ministrei, percebi que muitas pessoas confundiam conto com crônicas — gêneros totalmente diferentes. A crônica é uma opinião — quase sempre bem humorada — de um fato cotidiano e costuma ter prazo de validade curto. Embora no Brasil, crônicas escritas nos anos 1940 continuam atuais, como se tivessem sido escritas pela manhã. Mas não era para isso acontecer. É a velha mania das pessoas reciclarem temas, requentando-os… alguém aí, gosta de café frio?

Voltando aos contos… é um gênero que aceita diálogos entre os personagens. Mas não admite opinião do autor que pode ser ou não o narrador da história. A escrita ocorre na primeira ou na terceira pessoa do singular. Mas em momento algum pode fugir do objetivo principal do conto que é contar a história.

É o contrário da crônica, onde você pode esbravejar com o mundo, deixando claro o que você pensa e sente a respeito dos “patriotas acampados na porta do quartel“… porque a crônica é um gênero que acomoda uma crítica bem feita… e você pode soltar o verbo. Esbrejar contra o mundo. Soltar os cachorros. Só não pode esquecer que, ao fazer uso da sua liberdade de expressão, não pode ofender ou agredir pessoas com o seu linguajar. Seja elegante… sempre! É a base da literatura…

No conto você precisa ser objetivo… não dar informações desnecessárias a respeito da história, não se perder e usar uma linguagem simples e natural, o mais próximo possível da sua fala cotidiana. Não inventa de incrementar o seu vocabulário. Ninguém quer ler uma história com um dicionário do lado. A idéia é se devertir com uma narrativa gostosa, que te pega pela mão e te leva para outros lugares. Uma viagem, é o que você propõe ao leitor.

Novela

Eu costumo dizer a quem me pergunta: que Novela é um conto que ficou muito grande, mas que não conseguiu ser um romance. E toda vez que digo isso… caiu na risada porque não é tão simples, mas é uma maneira rápida de definir o gênero.

A novela tem vários personagens que giram ao redor do protagonista, que é a razão da história. O ritmo da narrativa é mais acelerado e as cenas são muito importantes para esse gênero, por isso são facilmente adaptáveis para o teatro, cinema ou televisão.

No Brasil é comum as pessoas confundirem o gênero literário com as teledramaturgias produzidas pela Rede Globo que são vendidas como: novela — palavra mais simples que teledramaturgia. Você consegue imaginar o público dizendo: vou assistir a teledramaturgia das seis-sete-nove? Nem eu… Mas assistir uma boa novela produzida pela emissora te ajuda a compreender esse gênero. Na hora de criar os núcleos e as cenas.

E há um critério muito equivocado usado para determinar o gênero novela: a quantidade de páginas. Dizem que é uma espécie de limar entre cem a duzentas páginas.

Perdão Jane Austen! Eles tem essa mania de montante de páginas.

Romance

E chegamos ao gênero que eu considero o mais importante porque é o meu favorito e, sem dúvida, é mais conhecido quando se trata de literatura. Apesar do nome, aviso que história de amor não é uma exclusivamente do gênero. Romance é uma definição dada a narrativas extensas, com variados temas e seis arcos narrativos:: exposição, conflito, ação ascendente, clímax, ação descendente e resolução.

O romance apresenta muitos personagens, contando com protagonistas, antagonistas e personagens secundários — com arcos dramáticos próprios. Há inúmeros conflitos, clímax e reviravoltas.

Você precisa ter total conhecimento da vida de seus personagens. Definição dos protagonistas e antagonistas e consciência do foco narrativo: declinio, ascensão, complexa, dramática. Esse foco não pode, nem deve mudar ao longo da história. E o autor precisa deixar claro desde o primeiro parágrafo para onde vai conduir o leitor.

Para cada foco narrativo, há exemplos na literatura universal. De Flaubert e sua Madame Boavary à Jane Austen e seu Orguho e Preconceito. Romeu e Julieta de Shakespeare. Orlando de Virginia Woolf. Frankenstein de Mary Shelley — para citar alguns livros que você pode ler para se localizar na realidade literária e seus estilos…

Claro que fiz aqui um resumo… apenas para situar as diferenças existentes entre contos, novelas e romances… Recomendo que experimente cada um dos gêneros em suas leituras. Um conto delicioso de ser ler é O Gato Preto, de Edgar Allan Poe, um dos melhores nesse segmento. No gênero novela, eu recomendo a mestra Jane Austen e seu pitoresco Razão e sentimento (com tradução de Lygia Fagundes Teles) e o excelente romance: A elegância do ouriço, de Muriel Barbery…

E se quiser conversar a respeito… temos o nosso Clube de Escrita da Scenarium, onde discutimos e realizamos exercícios de escrita. Vem com a gente, os nosos encontros acontecem às segundas, das 20 às 22 horas — online…

Leitura comentada  | Alice, uma voz nas pedras

Olá,

Temos um novo encontro marcado e dessa vez… eu e Suzana Martins iremos comentar o livro Alice, uma voz nas pedras… de minha autoria.

O romance escrito por mim e publicado em 2020 conta a história da jovem Alice, uma menina sonhadora que desde a infância deseja encontrar o seu par e ouvir dele um romântico pedido de casamento. E o sonho vira realidade. Mas no meio do caminho, os abusos e a violência cometidas pelo marido, faz da vida de Alice um pesadelo…

Alice, uma voz nas pedras não é leitura fácil! Mas os elementos destacados: marido-esposa, sonho de princesa, conto de fadas, desejos e vontades nos coloca para pensar em como os modelos estão errados e as fórmulas incorretas. Em pleno século XXI, ainda chafurdamos no atraso quando se trata do lugar da mulher e do homem na sociedade.

 Anota aí, dia 17 de fevereiro, às 19h30

Leitura comentada  | O amor sem mestre

Olá,

Estamos de volta e no melhor estilo… com o nosso encontro mensal: Leitura comentada. E par começar oo primeiro capítulo de 2023, eu e Suzana Martins iremos comentar (na próxima sexta-feira, às 19h30) o livro O amor sem mestre… um conto de fadas as avessas, onde o Príncipe vira um Sapo.

Na ficção curta escrita por Flávia Côrtes, a personagem da trama, acredita estar diante de um homem maravilhoso — o melhor dos espécimes. O desejo de ser amada e de se sentir desejada — que habita na maioria das mulhers — impede Luziana de perceber a emboscada que é relacionar-me com um suposto Príncipe…

“O Amor sem mestre” conta a história de uma jovem romântica. Luziana, como muitas meninas apaixonadas, imaginava viver um conto de fadas. Mas a carruagem virou abóbora muito antes da meia-noite. Sem fada madrinha ou sapatinho de cristal, ela precisou encarar o sapo que beijou pensando ser um homem.

 Anota aí, dia 20 de janeiro, às 19h30

Qual ano deixaremos para trás?

Olhei lá para fora… e dei pelos dias-horas-semanas, o mundo, a vida, a realidade. Estamos em pleno dezembro. Verão de 2022. Respirei fundo. Fechei os olhos e tentei juntar momentos, como quem varre o chão e recolhe pedregulhos, folhas… para jogar fora.

Vi a tarde caindo, toda envelopada em nuvens escuras, densas…

Promessas de tempestade.

Eu nunca me entendi com essa palavra: promessas. Não prático… e desconfio das que são feitas por aí. A maioria não se cumpre. São vazias e a sensação que eu tenho é que o sentido é esse.

Um trovão explodiu nos ares.
Coisa mais linda este som rouco-forte.
Uma espécie de rasgo.

Respirei fundo de novo e de novo e de novo… Senti o vento frio úmido — sutilmente salgado — passar por mim… e levou tudo embora com ele, para bem longe… inclusive a tarde e a chuva.

Outra promessa que não se cumpre.

Dentro da noite, me pus a vigiar uma ou outra estrela. Pensei nos anos que me trouxeram até aqui. E num estalo… me lembrei-visitei o primeiro. Dois mil e dois.

Passou tão depressa… foi ontem. Eu brinquei tanto e tanto naqueles dias de agosto… tropecei em esquinas. Descobri caminhos-paisagens. Fiz um mapa de lugares-pessoas apenas para me perder de mim, do passo e da cidade. É bom demais se abandonar à própria sorte… outra palavra estranha que escrevo sem crédito.

Eu cheguei a cenários vários naquele setembro-outubro-novembro-dezembro. Alguns lugares eram bem curiosos… A cidade parecia fingir esquecê-los para pessoas como eu encontrar, lembrar e oferecer a outros em linhas escritas — registros polaroides…

Duas décadas depois… olhando para trás, não sei dizer onde começou este ano. Não consigo me lembrar onde estava. Talvez na varanda a observar a avenida com nome de pássaro. Ou tenha fechado os olhos mais cedo, antes da meia-noite. Não sei. Falta memória-lugar…

Quando foi que este surto aconteceu?

Olho para trás e me lembro da última festa. Alguns textos escritos a respeito do último dia do ano. Eu tenho vários últimos dias em mente. Do ano… vida… realidade.

Lembrei da tal festa a la Gatsby… todos nós reunidos ao redor de uma mesa farta. Gargalhadas altas. Gente vestindo branco-preto-vermelho… Fazendo suas simpatias e as tais promessas de ano novo, que caducam no minuto seguinte…

A conversa era boa… nos distraímos e soubemos que o Ano era outro com algum atraso. Os risos caíram das bocas. Trocamos abraços e desejamos o de sempre. Deu tudo errado…

Mas em que ano foi isso? 18, 19, 20? Parece que alguém embaralhou todos os dias-semanas-meses — como se fossem cartas de um baralho — e distribuiu para todos nós… em uma nova rodada? Mas que jogo doido é esse?

Certeza que isso foi coisa de Cronos. Ou seria Kairos… num momento de revolta contra os humanos e o nosso maldito hábito de abandonar o presente e fincar o passo no futuro e de lá… invocar o passado quando tudo falha?

Teria ele, num instante de fúria divina, nos deixado à deriva: sem tempo e sem consciência do que foi ontem? E agora? Como é que se reorganiza tudo isso? Talvez seja um jogo de pedras e casas feitas com giz no chão… Do céu ao inferno.

Alguém ainda se lembra como se brinca disso?
Quem começa?

Lunna Guedes... sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecia o outono em qualquer hemisfério e escreve por escrever somente, às vezes na própria pele ou nas paredes do corpo, por dentro… Gosta de caminhar e contar os passos e de ser perder de si e do mundo alheio… às vezes, atende por Catarina!

Scenarium 8 | Coletivo Barquinho de papel

Adriana Aneli

Marcha Soldado

Isabel Rupaud

Barquinhos de Papel

Lunna Guedes

Origami

Mariana Gouveia

Barquinhos

Rozana Gastaldi Cominal

Barquinhos de Papel

Suzana Martins

Delírios de Papel

Barquinho de Papel | Origami

Escolhi a varanda após a leitura de um poema que foi enviado por um poeta… um ilustre desconhecido da realidade literária. Ele queria a minha opinião a respeito de suas linhas-primeiras — coisa bastante comum por aqui… O domador de palavras, como se define, teceu um diálogo com o papel que ao ser dobrado converte-se em barquinho de papel. 

Lido, o poema não causou impacto algum em minha anatomia… Às vezes, acontece. O verso atravessa a minha epiderme e vai embora, sem deixar rastros. O abandonei na tela — condição de barco a deriva em alto mar — a se afastar dos meus olhos… Com a promessa de retorno… a qualquer momento.

Preparei uma xícara de chá e na condição de marinheiro… me pus a navegar pelos cômodos da casa.  Quando dei por mim, estava a repetir o movimento das mãos… dando nova forma ao papel. Dobrando uma-duas-três-quatro vezes, criando vincos com as unhas… Do quadrado inicial para um triângulo maior-menor… E de dobra em dobra, eis que acontece um barquinho…

A primeira vez que pratiquei a dobradura foi em sala de aula — a mais colorida da escola, com obras de arte mirins penduradas em um varal — desenhos feito à lápis e algumas pinturas com guache — que se misturavam a réplicas de grandes artistas.

— Todos somos artistas! — disse a professora, me fazendo bufar ao ter certeza de que naquela turma de vinte e duas criaturas insones, havia apenas arteiros… 

A tal sala temática era uma invenção de Eva, a nossa professora de Educação Artística que, acreditava estar  perto de encontrar um novo talento para lapidar e apresenta-lo ao mundo — era um sonho convertido em projeto de vida… Com ela, aprendi as cores primárias, secundárias, terciárias e suas respectivas misturas. Fiz um desenho com nanquim e preenchi um caderno inteiro com desenhos horríveis… Não era a minha aula preferida e a professora não me conquistava com suas teorias de espaço, cores, fôrmas e formas. Por razões obvias, eu não era a personagem que ela tanto procurava.


Mas, foi em uma de suas aulas — tínhamos duas por semana — que conhecemos Akemi… uma artista oriental,  radicada em nossa cidade. Ela se parecia com um daqueles enfeites de porcelana, no qual esbarramos — descuidados — e quebramos. Por ter curiosidade a respeito da cultura oriental, me interessei. Alguns de seus trabalhos atraíram a minha atenção. Ela desenhava letras orientais em um papel diferente, específico para a sua arte: arroz e os seus traços eram de uma delicadeza impressionante.

Akemi pouco falou a respeito do papel que usava, confeccionado a partir das longas fibras de arroz branco, resistente e de cor branca, quase translúcida e textura áspera para falar a respeito de uma técnica milenar: o origami. 

Meu interesse minguou…
Akemi ensinava os segredos do papel e a magia das mãos — explicando o sentido da palavra: origami quer dizer ori (dobrar) kami (papel).

Arte popular oriunda do Japão que consiste em dobrar o papel sem cortar até obter uma forma específica. Mencionou Akira Yoshizawa o criador da idéia da dobragem criativa — Sasaku Origami — e inventor de um conjunto de métodos que permite  dobrar uma série de animais e pássaros.

Akemi dobrava o papel com facilidade. Todos os seus movimentos eram delicados e lentos. Ao vê-la, pensei em meu livro, deixado aberto, em cima da minha mesa de meu quarto, de frente para o mundo-mar-cidade e os muitos telhados vermelhos.

Cresci acreditando que poderia saltar muros, escalar telhados e chegar até a parte mais baixa da cidade, inspirada no filme Mary Poppins. Eu vivia resmungando a canção chim-chim-cher-ee por aí…. Por sorte, a criança que eu fui, apenas imaginou essa possibilidade sem nunca tentar tal coisa. Era parte de um sonho-infantil e eu adormeci inúmeras vezes no telhado. Pela manhã, despertava — na cama — em dúvidas entre sonho ou realidade. Passado o susto de não me encontrar na cama e me procurar pela casa inteira… até me localizarem no telhado, mio babo providenciou uma escada de fácil acesso para chegar até lá, ao invés de me proibir de sair pela janela, usando todo o discurso a respeito do perigo que eu corria ao escalar a parede. Era ele quem me devolvida para a cama no meio da madrugada. E foi das mãos dele que recebi uma luneta para explorar distâncias… E não era um modelo qualquer — era uma luneta-pirata…

Regressei de meus delírios — lugar para onde vou com frequência e facilidade — quando a professora colocou um origami em minha mesa. Era um Tsuru — ave sagrada do Japão, símbolo da saúde, felicidade, longevidade e da fortuna, que em terras nipônicas é conhecido como orizuru. É um dos origami mais tradicionais da cultura japonesa.

— Inicialmente — disse Akemi — o tsuru tinha função decorativa. Era usado para enfeitar os quartos das crianças, distraindo-as da realidade, conduzindo-as ao mundo dos sonhos. Mais tarde, foi associado às orações e passou a ser oferecido nos templos, acompanhado de pedidos de proteção. E existe uma lenda muito famosa em meu país que, diz que se dobrarmos mil tsurus, os deuses realizarão o nosso mais profundo desejo.

A Lenda dos Mil Tsurus se tornou conhecida através da história de Sadako Sasaki, uma menina que foi exposta à radiação da bomba atômica, que atingiu a cidade de Hiroshima. Sadako desenvolveu leucemia e passou sua infância sendo tratada no Hospital da Cruz Vermelha, onde conheceu a lenda do Senbazuru e decidiu que iria dobrar os mil tsurus e ter seu desejo realizado. Apesar de sua determinação, a menina faleceu antes de completar sua missão. A história se espalhou ao vento. As crianças da cidade se reuniram e finalizaram a tarefa por Sadako. Virou lenda… E todo ano, assim como florescem as cerejeiras num lindo espetáculo… as árvores da cidade amanhecem coloridas por tsurus feitos pelas crianças que ouvem histórias a respeito da importância de se acreditar nos sonhos.

Depois de zanzar por toda a sala, enquanto tagarelava lendas, com seus passos de gueixa, Akemi parou ao lado da minha mesa… e pousou ali o tsuru por ela confeccionado, avisando-me: toda vez que se ganha um tsuru, devemos retribuir. Eu exibi um sorriso amarelo-pálido-sem-graça e quase inventei uma lenda própria para me livrar da manobra da artista oriental… Dobrei o meu tsuru com toda a dificuldade do mundo. As outras crianças se saíram melhores que eu, em suas tarefas.

Eu era melhor na arte de virar páginas…

Ao final da aula, ganhamos um kit dobradura. Em meu quarto, escolhi o quadrado azul e de dobra em dobra, finalmente aconteceu um barquinho, deixado em cima do livro do momento: 20 mil léguas submarinas, de Jules Verne…

Lunna Guedes... sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecia o outono em qualquer hemisfério e escreve por escrever somente, às vezes na própria pele ou nas paredes do corpo, por dentro… Gosta de caminhar e contar os passos e de ser perder de si e do mundo alheio… às vezes, atende por Catarina!

CASA de vidro  | Dona Ioiô

Iolanda era uma exímia dona de Casa e excelente cozinheira. Não havia uma única festa de aniversário na cidade em que morava desde o nascimento… sem o seu famoso bolo de fitas, em camadas.
Tudo era segredo na cozinha de Ioiô que não revelava nada a ninguém e fazia tudo sozinha, acumulando responsabilidades. A sua barraca de doces era a mais visitada na quermesse da Igreja, durante as festas da Padroeira, para desconforto do Padre que considerava tudo que aquela mulher fazia um pecado. Os seus quitutes eram disputados nas festas da Escola Municipal, onde estudou — apenas o suficiente para ser esposa e mãe.
Iolanda foi escolhida — aos dezesseis anos — por Darci, durante a missa de domingo… Era uma moça bonita e estava na idade certa. Tinha um belo rosto. Mas foram os belos joelhos que atraíram o olhar do rapaz, que cursava administração na cidade vizinha. O pedido foi feito pelo pai do moço e aceito pelo pai da moça. Casaram-se no ano seguinte.

O pai entregou a noiva com satisfação, transferindo a responsabilidade para o noivo. Presenteou o jovem casal com uma de suas casas — iguais — na famosa Avenida da Saudade, que era o endereço do único cemitério da cidade e virou motivo de piada entre os amigos do noivo. O casamento deu novo status a Darci, que ganhou a confiança do dono da principal fábrica da cidade. Muito responsável, passou a gerenciar o lugar, para inveja de alguns. O primeiro filho — varão — veio ao mundo dois anos depois. Dois anos depois… veio o segundo. Darci não escondeu a decepção… Queria uma menina. Considerou, no entanto, que na próxima tentativa… teria a sua menininha. Não aconteceu. Ao observar os casais de amigos com seus muitos filhos, Iolanda decidiu que estava satisfeita com seu casal de meninos. Havia aprendido com as mulheres de sua família que, quando a mulher não quer, os filhos não vêm.

Iolanda era mulher sensitiva, sempre dizia suas rezas e tinha os seus cuidados. Escolhia ervas no quintal para dores, quebrantos. Fazia seus patuás… tudo às escondidas, porque o marido — católico fervoroso — não admitia benzeduras e não tolerava simpatias. Mas, ao sair de casa, benzia-se… e ao voltar, repetia o ritual do sinal da cruz no peito, pedindo bênçãos ao pai, o seu Criador. De passagem pela porta, saudava a imagem da santa e agradecia por tudo que tinha. Acendia uma vela às segundas e às seis horas em ponto, parava tudo que estivesse fazendo para rezar a ave Maria. Confessava os seus pecados — semanalmente — ao Santo Padre, de quem recebia a hóstia sagrada. O homem se sentia um verdadeiro filho de Deus aos domingos.

Iolanda não via diferença alguma naqueles rituais cristãos dos que havia aprendido com sua avó, na infância.

O marido obedecia — sem titubear — quando a mulher pedia para evitar o traçado percorrido de casa — onde moravam — até a fábrica, ao sair. Na única vez que deu de ombros aos avisos da esposa, complicou-se… para nunca mais.

— Querido, passe na farmácia do seu Nelson, na ida. Preciso da pomada e na volta do trabalho, estará cansado. Poderá não se lembrar.
— Tem razão, querida…

Era tudo que precisava para ter paz e a certeza de que nada lhe aconteceria. O filho mais velho não ousava desobedecer aos conselhos da mãe e era o autor do mantra repetido na família:

se dona Ioiô avisar, melhor não ignorar

Ioiô era conhecida por sua sensibilidade e, toda vez que sentia arrepios, quem estivesse por perto… se benzia. O padre se incomodava, mas se aproximava para saber se estava tudo bem. Nesse dia, não estava. Iolanda abandonou os preparativos para os festejos de Cosme e Damião, sem dizer palavras, pegou as suas coisas e saiu correndo.

Chegou em casa junto com a notícia…
O marido havia sofrido um infarto.

O padre aproveitou o discurso de despedida para culpar Iolanda. Disse ser uma punição de Deus e fez questão de relembrar os alertas que fazia quanto ao perigo das rezas proibidas, dos ingredientes secretos e das suas feitiçarias. Ela ouviu tudo quieta, ao lado dos filhos, que seguravam as suas mãos, um de cada lado… Odiaram as palavras do padre, mas não reagiram em respeito à mãe.

— Esse aí pensa que é Deus. — murmurou o mais velho.
— Para mim parece o diabo. — respondeu o caçula num tom quase inaudível.

Durante o cortejo pelas ruas do cemitério até o túmulo, os meninos perceberam as conversinhas de ouvido. E depois do enterro, viram as pessoas se afastarem de Ioiô, que passou a ser mal falada na cidade.

— Cabeças erguidas, meus meninos. É assim mesmo, agora a mãe de vocês é uma triste e pobre viúva. Uma mulher sem marido não tem valor, tampouco direito à vida. O certo seria morrer com o marido.
— Não, mamãe. — Resmungou o caçula, grudando no corpo da mãe.
— É o que pensa essa gente, meu querido, mas eu estou aqui e vou cuidar de vocês. Não se preocupem que Ioiô ainda vai viver muito.

Iolanda cumpriu seu luto…
A casa foi desbotando com ela.
As flores do jardim secaram.
A tinta descascou…
E as lendas se multiplicaram ao seu redor… Com o passar dos dias!

Reclusa, dependia dos seus meninos, que cuidavam dos afazeres nas ruas. O mais velho foi para a faculdade e o caçula seguia enfrentando os desaforos no colégio…. Como era bom de briga, escapava com agilidade dos socos e acertava a cara dos rivais — como se fosse um dardo lançado contra o alvo. Com medo da lenda que corria pela cidade — a respeito da mãe do menino —, o Diretor nada fazia, apenas o repreendia, com tom de voz grave e com o dedo em riste… numa visível tentativa de intimidar o garoto:


— Que isso não se repita!


Iolanda se cansou do comportamento dos moradores de sua cidade ao receber um bilhete do Diretor, que repreendia o seu filho pelo comportamento e pedia que melhorasse a educação do menino. Furiosa, foi espiar a vizinhança através das cortinas de seu quarto e, ao reparar no padre em conversas com seu rebanho… decidiu agir. Acordou mais cedo no dia seguinte e fez todos os afazeres da casa… serviu o café da manhã para os filhos e esperou até irem para a escola.

Escolheu um disco de tango — o favorito de sua avó — e colocou para girar na vitrola. O som se espalhou por todos os cômodos. Preparou uma xícara de chá de ervas e foi se sentar à mesa da cozinha. Reagia como se tivesse emprestado o corpo para o espírito da mulher de quem herdou o nome… Embaralhou as cartas com calma, organizando os pensamentos e as espalhou — uma por uma — por cima da mesa. Ao virar a primeira carta… gargalhou tão alto, que foi ouvida por toda a vizinhança, que se benzeu pedindo proteção aos céus.

Iolanda abriu uma das gavetas do armário, pegou o velho caderninho onde anotava a lista de coisas que precisava comprar e escreveu um bilhete que o caçula foi entregar nas mãos de dona Filomena, conhecida por acomodar o corpanzil na janela, assim que o marido saía para o trabalho.

Ela acendia o cigarro e pronto…
Ficava sabendo de tudo que se passava na vizinhança.
E o que não descobria… inventava.
O padre a repreendia pelo comportamento — durante as confissões — mas só depois que bebia de sua inesgotável fonte.
E Filomena se sentia perdoada…
Após rezar seus paisnossos muitos e avemarias tantas.
Quando não estava de bom humor ou a fofoca não era das melhores, o padre a mandava rezar o terço inteiro.
E o tal bilhete de Iolanda provocou enorme alvoroço em Filomena, que pensou em não ler. O deixou em cima da mesinha da sala, entre os sofás e a televisão. Passava por ali a caminho da janela, mas como nada acontecia naquela manhã, só conseguia pensar no que dizia o tal pedaço de papel muito bem dobrado. Tentou evitá-lo, mas não conseguiu. Sentou-se no sofá, desdobrou o papel e leu as malditas palavras escritas com caligrafia fina:

Amiga Filomena,

Venha à minha casa, assim que possível e, por favor, seja discreta, preciso lhe falar. Assunto de seu interesse…

Ioiô.

— E desde quando eu sou amiga de bruxa? Desgraçada. Não vou. Ela deve estar querendo o meu mal. Minha Nossa Senhora das almas sem sossego, me valha.

Filomena fez o papel em pedaços, jogou na privada e deu descarga, cuspindo seu horror três vezes. Arrumou as camas, varreu a casa, lavou a roupa e as pendurou no varal. Preparou o almoço e quase queimou o arroz tamanho o desassossego que crescia em seu íntimo. Preocupada, mal conseguiu fazer a refeição. Disse ao marido que estava um pouco indisposta por causa do calor e avisou que iria se deitar um pouco. Depois que ele saiu, livrou-se dos filhos e arrumou-se, decidida a ir à casa de Iolanda. Compreendeu, ao empurrar o portão daquela casa — amaldiçoada por Deus — o motivo de seu Darci benzer-se ao entrar ou sair. Fez o mesmo — três vezes — para evitar o pior. Estava pronta para bater na porta, quando Iolanda — em trajes ciganos — a recebeu com um enorme sorriso de boas-vindas.

Filomena ficou impressionada…

Havia anos que não colocava os olhos naquela mulher, que não havia envelhecido um único dia. Só pode ser coisa do diabo — pensou… Ela deve ter feito um pacto com ele e o preço foi a alma do marido. Pobre homem. — concluiu, aceitando o convite para entrar. Observou que a casa cheirava a chá e bolo — o que a fez se lembrar das festas de aniversário da cidade. O bolo feito por Ioiô era personagem principal e como era gostoso. Filomena era a primeira da fila para pegar um generoso pedaço e levar para casa. Reparou de passagem que tudo estava muito bem cuidado. Da mobília lustrada ao piso encerado, contrariando o que se dizia na cidade. Não havia nada quebrado ou coisas estranhas pelas paredes. Era uma casa igual às outras.

Boquiaberta, seguiu Iolanda pelo corredor, repleto de fotos da família… alguns ela reconheceu, outros não. Mas sabia da origem de Iolanda — bisneta de espanhóis. Os rumores diziam que era uma família cigana, que vagava pelo mundo antes de chegar à cidade. Nada nas fotografias apontavam para isso. As pessoas em preto e branco pareciam meros camponeses. A mesa no quintal dos fundos estava posta… toalha vermelha e uma bandeja com bule e xícaras.

— Sente-se… aceita um chá de cidreira? Colhi há pouco e faz bem para os nervos. Ajuda a se acalmar…
— Eu vou aceitar. Obrigada. — era tudo que precisava naquele momento: se acalmar — Iolanda, por que me chamou aqui? Fiquei preocupada… Aconteceu alguma coisa.
— Não fui eu quem a chamou, querida amiga. Foram as cartas…

Filomena inquietou-se na cadeira com a resposta. Não entendia nada de cartas, mas tinha ouvido falar a respeito. Uma das amigas tinha ido a uma cartomante na cidade vizinha. Depois de servir o chá e uma generosa fatia de bolo… puxou o baralho — Filomena nem viu de onde — e espalhou três cartas por cima da mesa.

— Veja! É exatamente a mesma resposta…

Filomena olhou bem de perto. E desejou se benzer mais três vezes. Talvez seis. Mas não o fez. Estava com muito medo de Iolanda… Que parecia ter movimentos típicos de uma naja.

— As notícias não são boas…
— Minha nossa senhora das pessoas aflitas, me ampare com o seu poderoso manto. — Murmurou, quase desfalecendo.

Por sorte, estava sentada ou teria ido ao chão.

— Você foi ao médico recentemente, querida amiga.
— Sim, eu fui, — respondeu aflita — fui fazer alguns exames, coisas de rotina. Nada grave.

Filomena ficou incomodada, não tinha contado a ninguém — apenas ao marido. Estava sentindo calores… o corpo parecia estar em chamas e, às vezes, era muito difícil respirar. Sabia que era coisa da idade e por isso decidiu ir ao médico. 

— O que está vendo?
— Eu sinto muito, minha amiga…
— O que é? Eu vou morrer? É isso? Diga de uma vez. — desesperou-se.
— Muito pior, minha amiga. Mas você pode evitar…
— Como? O que tenho que fazer? Diga, minha amiga, por favor. Faço o que for preciso.
— Eu vou lhe ajudar, não se preocupe. Direi tudo o que terá de fazer para quebrar o mal que lhe enviaram…

Filomena apertou bem os olhos… Enumerou nomes em sua mente. A lista de desafetos era grande… Mas um único nome se destacava. E ela sabia que aquela criatura seria capaz de lhe desejar a morte ou coisa pior.

— Eu farei tudo que disser, minha querida.

Filomena havia perdido o medo. Segurava nas mãos de Ioiô com todo o seu fervor, como costumava fazer com o Padre… aquele Santo homem. E, ao sair da casa de Ioiô, correu até a Igreja — alvoroçada com tudo que tinha escutado — para contar ao santo homem, que ao ouvi-la, benzeu-se, preocupado.

— Minha filha, se apegue com Deus que ele irá protegê-la. Se ele é por nós, ninguém será contra nós. Mas, depois de tudo o que disse, e você sabe que não acredito nessas feitiçarias dessa mulher, creio que seja melhor fazer o que ela pediu. Afinal, se trata de caridade e esse chá de folhas, durante sete dias. Não há mal nisso. Mas não vá comentar isso com mais ninguém, minha filha.

Filomena concordou… Seguiu à risca todas as orientações de Ioiô. E como nada lhe aconteceu. O resultado dos exames apontaram que sua saúde estava perfeita e até os calores cessaram. Acreditou que Ioiô a salvou do pior. Como agradecimento, mandou uma linda cesta de flores e frutas para a casa da querida amiga. Contrariando o padre, Filomena espalhou a notícia aos quatro cantos da cidade… E quando um novo bilhete foi entregue pelo caçula de Iolanda a outra moradora, a mulher se arrumou e correu para visitar Ioiô. Aceitou o chá, a fatia de bolo, olhou as cartas e aguardou pela tradução daqueles desenhos sem sentido ou significado.

Dona Ioiô tinha contato com o mundo oculto… Recebia avisos de malfeitos e encantamentos que precisavam ser quebrados e, alma caridosa que era, se dispunha a ajudar a ensinar como se proteger. O padre, em suas andanças por aquela rua, observava a velha casa com ódio. A mulher que ele havia difamado tornou-se figura respeitada, em pouco tempo. Recebia visitas frequentes… Com ou sem bilhetes. Mesmo que tudo estivesse bem, as mulheres procuravam por proteção e ela não se recusava. Ele tentou — durante as missas — alertar do perigo que era aquela casa-mulher. Mas não conseguiu contaminar o rebanho, que havia beatificado Ioiô, sem a sua autorização. Filomena contava — em meio a um pesado trago de cigarro — que a única pessoa que havia se recusado a ir até lá, fazendo em pedaços o bilhete de dona Ioiô — obedecendo ao padre — tinha morrido durante a refeição, sentada diante de toda a família… engasgada com um pedaço de pão.

— Dona Ioiô mandou bilhete. E ela fez o que? Ignorou. Deu no que deu. Eu só recebi uma vez e fiz tudo que ela me aconselhou. Estou aqui, bem viva, saudável e sem os tais calores — cochichou —, e meu marido e filhos estão todos bem.
— Nunca recebi bilhete — disse uma das vizinhas, benzendo-se —, mas fiz visita a dona Ioiô… e levei um presentinho. Ela ficou tão satisfeita que colocou as cartas para mim. E a mulher é danada, viu? Acertou tudo o que me disse.
— Comigo também foi certeira. Eu bem que estava desconfiada que tinha uma víbora tentando dar o bote no meu marido. Ioiô confirmou e disse o que fazer para cortar a cabeça da maldita cobra. E eu fiz tudo direitinho. Comprei as peças vermelhas — murmurou, fingindo vergonha — e ao tirar a camisola pedi a ele que passasse a loção de ervas, no meu corpo todo.

As mulheres quiseram detalhes da loção poderosa… interessadas em manter a santidade do casamento, principalmente entre as quatro sagradas paredes do quarto.

— Acho que vou levar um presentinho para Ioiô, no final da tarde. Não custa nada agradá-la, quem sabe ela me recomenda essa loção maravilhosa.
— Sem falar que ela sempre serve uma fatia daquele delicioso bolo de fitas. E, de repente, ela põe as cartas para mim…
— Está sentindo alguma coisa, Filomena?
— Não! Mas da outra vez foi uma cascavel quem me desejou mal, vizinha… e ela andou passando na minha porta. Todo cuidado é pouco.
— Você está certa! Melhor se prevenir porque essa cidade está cheia de cobras.

Lunna Guedes... sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecia o outono em qualquer hemisfério e escreve por escrever somente, às vezes na própria pele ou nas paredes do corpo, por dentro… Gosta de caminhar e contar os passos e de ser perder de si e do mundo alheio… às vezes, atende por Catarina!

Três poemas de Rozana Gastaldi Cominal

Olá leitor e leitora,

E hoje quem finaliza a semana poética por aqui… sou eu. Passei as horas da última quinta-feira (ontem) revirando dúzias de páginas dos livros de poesias que publiquei desde 2014. Foi um processo delicioso. Revisitei processos-projetos… senti o corpo ser atingido por alguns abalos sísmicos, como tanto gostos. Ouvi trovões e senti o ressoar do carrilhão da minha infância. Tudo isso serviu para que eu retornasse as páginas do livro que resultou do primeiro desafio de poesias que eu promovi na Scenarium, que é um dos meus Coletivos favoritos: Nascer pela segunda vez…

E a poesia de Rozana Gastaldi Cominal acenou como resposta a todas essas sentimentalidades… coisas que apenas a poesia faz comigo. E creio que nem preciso dizer isso a quem me conhece. Mas como escrever em um blogue, é anunciar-se para uma multidão de ninguéns — amo essa palavra e como ressoa em meu íntimo com uma intensidade tipicamente dickinsoniana.

Boa leitura e até a próxima!

1

Ao nascer
cortam-me o cordão umbilica
Nascente
deságuo no mundo
em busca de amor incondicional

2

Diante das incertezas,
o tempo apenas ri de mim.
Mesmo cativa, condição involuntária
busco minha carta de alforria.

3

Ação imprevista.
Correr os riscos.
O que nos move hoje?
Dividir. Multiplicar.
Somar. Subtrair.
Seja qual for a operação
 — viver é perder!

Leitura comentada  | Quinta das especiarias

Olá,

No último capítulo do ano, eu e a Suzana Martins vamos comentar o livro Quinta das especiarias… uma iguaria literária que foi escrita pela queridissima Roseli Pedroso.

Eu posso até me classificar como suspeita para falar do livro e da autora… mas, contra fatos não há argumentos. E o livro é ma.ra.vi.lho.so. Uma viagem por aromas e sabores. Mas não vou falar mais nada… Deixo o convite para você participar da nossa leitura comentada de dezembro, lá no instagram… que será a última do ano. Mas Ano novo… leituras novas e comentários insanos totalmente novos.

É convite feito à moda antiga, impresso e com o seu nome em letras douradas, com horário marcado. Aconselho a escolher o que levar, porque é de praxe… não chegar com as mãos vazias. Encontrará a mesa posta, com a melhor louça da casa. Os talheres são de prata porque o silêncio você já sabe…


O cardápio foi escolhido com cuidado para conduzi-lo numa deliciosa viagem pelo tempo. Alguns pratos te levarão direto para a infância, outras para a juventude… certo mesmo é que tudo começa e termina na cozinha, o melhor cômodo da casa.

 Anota aí, dia 23 de dezembro, às 19h30

Leitura comentada  | Fio de Prata

Olá,

Nesse novembro arredio, Lunna Guedes e Suzana Martins comentam o delicioso livro de contos de Margarida Montejano: Fio de Prata… no instagram da Scenarium.

O Fio de Prata reúne sete contos ilustrados pelo artista plástico Ruy Assumpção, compostos por experiências reais e imaginárias, permeadas pela fantasia que a poética da vida e da literatura ilumina. Nos contos, o leitor encontrará lampejos de memórias do universo feminino que conduzem, de forma livre, à reflexão.
Os contos do Fio de Prata, publicados pela Scenarium, livros artesanais, abordam a vida na tênue linha da existência.

👉 Anota aí, dia 18 de novembro, às 19h30

Scenarium 8 | 2022

mosaicum (poesia e prosa) casa de vidro (contos) as estações (poesia)
barquinho de papel (prosa) manifesto-me (crônicas) nas nuvens (poesia e prosa)
o ano do gato (contos) em mãos (correspondência)

livro 01

Organizado por Lunna Guedes, essa edição convidou os autores a poesia e a prosa… os autores: Adriana Aneli, Nirlei Maria Oliveira, Flávia Côrtes, Obdulio Nunes Ortega, Caetano Lagrasta, Anna Carriero, Lígia Libaneo, Anna Clara de Vitto, Yara Fers, Joakim Antônio, Isabel Rupaud,Roseli Pedroso, Mariana Gouveia.

O resultado são poesias em páginas azuis e uma narrativa que se oferece enquanto trovão no azul…

livro 02

Quem conta um conto, aumenta um pouco e foi partindo dessa premissa que Lunna Guedes convidou Adriana Aneli, Carol Favret, Flávia Côrtes, Isabel Rupaud, Mariana Gouveia e Obdulio Nuñes Ortega para escrever narrativas a partir de um conto — o fio condutor de Casa de vidro, tão frágil quanto as emoções dos personagens que cicularm de conto em conto…

livro 03

Um livro de poesias que reúne 04 poetas da Scenarium Flávia Côrtes, Mariana Gouveia, Nirlei Maria Oliveira e Suzana Martins e suas estações da pele, da alma, do cuore e da alma…

livro 04

A idéia para esses cadernos de contar histórias foi uma dobradura colocada por uma criança numa poça d´água — despertando memórias. Veio o convite a prosa: Adriana Aneli, Bianca César, Isabel Rupaud, Lua Souza, Mariana Gouveia, Rozana Gastaldi Cominal e Suzana Martins aceitaram conduzir seus barquinhos de papel por esse mar de páginas…

livro 05

Lunna Guedes teceu o convite, uma crônica por semana, propondo os temas que cada autor levou na direção que quis, propiciando um olhar para muias paisagens…

Escreveram-se: Flávia Côrtes, Isabel Rupaud, Mariana Gouveia, Manoel Gonalves (Manogon), Obdulio Nuñes Ortega…

livro 06

Quando crianças, ao olhar para as nuvens, vemos desenhos de gatos, cachorros, coelhinhos, dragões… dizem que é o imaginário infantil. Mas e nós, adultos? O que vemos?

Isabel Rupaud, Lua Sousa, Mariana Gouveia, Nirlei Maria Oliveira, Rozana Gastaldi Cominal responderam com poesia e prosa…

         

livro 07

A idéia veio de Edgar Allan Poe e seu conto O gato preto que foi publicado em uma edição do Saturday Evening Post em agosto de 1843.

O conto é um estudo da psicologia da culpa…… e foi apresentado durante o encontro do Clube de Escrita da Scenarium…

Ananda Karenina, Isabel Rupaud, Lua Souza, Lunna Guedes, Mariana Gouveia, Obdulio Nuñes Ortega e Roseli Pedroso…

Sete autores, um para cada gato ou seria para cada vida?

Com ilustração de Valerie David Cats e poesias de Flávia Côrtes, Jorge Luís Borges, Patricia Highsmit, Rozana Gastaldi Cominal e Wislawa Zymborska.

livro 08

Uma troca de correspondência iniciada por Lunna Guedes… que escreveu ao vento e esperou por respostas para iniciar a aventura em linhas entre diferentes geografias, anatomias…

Responderam ao aceno: Flávia Côrtes, Mariana Gouveia, Rozana Gastaldi Cominal e Suzana Martins…

Plural  | É preciso estar embriagado

Meu caro Poeta,

Parei em suas linhas ao arrumar as prateleiras no meio dessa tarde, quando seu livro se precipitou ao toque — oferecendo-se para leitura. É abril por aqui… e esse mês não lhe pertence. É de Eliot que o intitulou como ‘o mais cruel dos meses’… um precioso verso, não achas?

Eu não resisti ao teu ‘convite’…
Abandonei a arrumação e fui para a cozinha:
Preparar um café… aceitas?

…‘como o mendigo exibe a sua sordidez’ — toda vez que eu leio “les fleurs du mal” penso em tua Paris… mais humana, menos luz. As pessoas tinham tempo para acenar umas as outras. Era possível dialogar as poucas notícias do mundo. Apreciar os artistas de rua… se oferecer como modelo ao pintor desconhecido, apenas pelo prazer de se deixar ver-retratar e nada mais.

…‘fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça’ — será que foi após a passagem do famoso-arquiteto-urbano por lá… que tudo mudou? Ou será que outros antes dele, agiram sem serem vistos?

Remendaram tua Paris… e a fizeram Luz.

Pouco humana — uma estranha, que eu conheci sem, contudo, reconhecer-te naquele mal elaborado traço, onde multidões de ninguém se orientam. Eu andei com o teu livro em mãos por várias ruas… museus, galerias e nada.

E vejo o mesmo acontecer na cidade em que vivo os meus dias contemporâneos. Seria uma inspiração tardia  ou seriam os tais homens a agir nas sombras?

Eu não lhe disse… mas estamos a bordo do século XXI e lhe confesso que é embaraçosa tal afirmação. Tudo por aqui se repete, como se a vida, o mundo andasse em círculos. A cidade luz de Haussmann sobreviveu com suas luzes… mas querem arrancar dela o seu bem mais precioso… a sua essência: a liberdade. Querem calar os pincéis. Quebrar os grafites. Rasgar cartazes. Mutilar telas-pessoas.

… ‘a tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez’ — proibir voltou a ser Palavra de Ordem. Tudo orquestrado por Senhores que erguem a voz para defender a tal: ‘família tradicional’… aquela que zela pela moral, bons costumes e que censurou a sua poesia. Os exemplares foram todos recolhidos. E você foi apontado e condenado por ofender a moral pública. Um subversivo.

…‘em meio às hienas, às serpentes, aos chacais’ — e esses senhores, meu caro poeta… estão a vencer. Uma nova forma de censura já se faz notar. Voltaire não tem mais espaço entre nós. A filosofia do homem está fora de moda. Ainda é possível acreditar na estabilidade das essências e na desordem da história, mas não do mesmo modo que Voltaire.

Desapareceu o teatro da perseguição, meu caro. Mas não a perseguição em si. O auto da fé virou instrumento nas mãos de uns e outros; discretamente ignorado pelos homens de sempre.

Fala-se no povo e eu recordo os romanos.

Uma passagem bíblica que condena um inocente e liberta o culpado. Repete-se até as falsas profecias, meu caro.

Outro dia, em uma conversa, a pessoa com quem tentava dialogar, defendeu-se… usando o discurso conhecido de ser a favor da educação.

Uma pessoa branca, num mundo solúvel a defender a educação do povo.
Respirei fundo e pensei em Voltaire.
Onde estão seus inimigos, agora?

Eu espio pessoas do alto de seus discursos inflamados, tão certos e definitivos… e não digo palavra. E sei que não sou a única a sentir cansaço. Essa gente só quer dialogar com iguais, tão acostumadas as mesmas falas — repetidas incansavelmente — que estão.

É mais agradável quanto concordam
com a gente ou dizem o que vai
em nossa mente, alegam.

Eu prefiro ouvir um discurso contrário ao meu, mas banhado em lucidez. Como uma conversa bêbada é boa de se ouvir… Por isso, você preferia as horas no gargalo.

Como não desfruto do mesmo gosto, opto por sorrir e acenar… Sair de cena, fazer silêncio — como recomenda uma poeta contemporânea ou como faziam as moças vitorianas.

Imagino sua gargalhada!

Mas é cansativo existir nesse tempo, lhe asseguro… embora — insistente —, ainda percorra os arredores de todos os corpos-mambembes, convertidos em marionetes a marchar rumo a esquerda-direita.

Sinto falta da ironia de Voltaire, meu caro e do seu vasto material linguístico. Combinação perfeita entre tempos e espaços. Você foi moderno e contestou a burguesia e suas coisas de ontem. Acabou censurado por esse agente que infecta a sua Paris com prédios charmosos e passadouros banhados de sol. Tudo muito elegante, sem a presença de pessoas de verdade. Essas têm horas marcadas para chegar e sair. Que triste ver o seu flâneur limitado ao estrangeiro e não mais aos parisienses, decapitados.

Tanto faz… mais café?
…‘é o diabo que nos move e até nos manuseia!’.

Lunna Guedes

Nasci em Gênova, no ano de 1981… o mês era novembro e vim ao mundo sob a regência de sagitário, numa casa com três números, cuja soma sempre me intrigou. Aprendi a ler e a escrever na mesa da cozinha. Fui para a escola aos seis anos e não me saí muito bem. Mas fui até o fim e conclui todos os estudos… atualmente escrevo e bebo café, não necessariamente nessa ordem…

Plural  | Motivo

Eu penso no som da palavra, like always.

É como colocar um peso em cada uma das mãos para sentir densidade, forma. E o que mais me agrada é Poeta. Porque nunca sei o que vem. Sei o verso que chega e se aconchega nos olhos e na boca, na pele. É mais ou menos como pão quente que sai do forno e a faca escorrega a manteiga… num deslizar gostoso, quase um afago morno no outro.

Sei o verso e a força que tem ao ler.

Que é a minha própria voz que reproduz, como um eco distante que vai se aproximando e ressoa em meus labirintos, misturando-se. Sou casulo, nessas horas, eu acho. Certeza me falta porque quando um verso colide contra a minha mortalha, nunca sei o que sou, quem sou e se serei alguma coisa depois disso. 

Sei que nos tornamos uma coisa una e nessa unidade não cabe gênero.

E a palavra Poeta ressoa em superfícies que são corpos de homens e mulheres habitados ou não por figuras femininas ou masculinas que escrevem emoções e que falam por mim. Como Eliot — o poeta inglês que me deixou sem paz durante tanto tempo, com suas formas de incêndios nada moderadas… Ou Emily que fez o meu olhar marítimo ao tecer seus silêncios noturnos, compartilhados como se fossem missivas. Ainda menina chorava versos inteiros e sorria para os outros, respostas brancas, emaranhadas em filamentos de papel.

Posso enumerar nomes, mas não seria suficiente.

Ficaria eu com Cecília e sua escrita noturna, alheia a tudo que o dia expunha. Ela guardava tudo que via e sentia e experimentava nas horas mais silenciosas. Escrevia: “eu canto porque existo” — que nomeia essas linhas porque não poderia ser outro verso a capitanear meus desaforos. 

E a minha Cecília nem precisava se dizer poeta.
Mas disseram-na e deixaram claro que ela não era poetisa. Era poeta… e das Grandes. 

Quem sou eu para discordar?

A Mulher é uma das minhas Poetas preferidas, ao lado de tantas outras-outros-muitos. Mas eu não olho para a palavra poetisa com olhos de leitora.

A palavra não ecoa meus cantos.
É apenas um invencionismo.

Mas essa discussão eu deixo para os que discutem a língua e seus caminhos de ser. Esse organismo bem vivo que vai moldando o homem, se adequando ao tempo e ao espaço, ao corpo e a matéria. Alguns querem-na estática, retida em meia dúzia de regras. Imagino uma gargalhada e vou para as ruas. Em dia de feira é que se ouve um bom idioma falado-cantado… porque o som das vozes que ecoam pelas calçadas é outra coisa. 

Existem palavras que se perdem, outras que se retorcem e se diluem. São outras coisas. Ganham sentidos vários e, às vezes, deixam de ser. A palavra na boca é doce, amarga, salgada, ácida…  O melhor e o pior dos temperos. Mas, nas mãos de um poeta. Ah é força, eco, silêncio, barulho, é canto, sonho, pesadelo. É verso, livro, soneto, quadrilha: é poesia! E isso é para Poetas. 

Evoé…

Lunna Guedes


Nasci em Gênova, no ano de 1981… o mês era novembro e vim ao mundo sob a regência de sagitário, numa casa com três números, cuja soma sempre me intrigou. Aprendi a ler e a escrever na mesa da cozinha. Fui para a escola aos seis anos e não me saí muito bem. Mas fui até o fim e conclui todos os estudos… atualmente escrevo e bebo café, não necessariamente nessa ordem…

Revista Orpheu

Por Lunna Guedes

Nunca em Portugal tinha aparecido uma corrente literária que mostrasse originalidade, não relativa, senão absoluta; isto é, que excedesse as correntes literárias contemporâneas dos outros países — escreveu Fernando Pessoa a propósito de Orpheu.

O Ano era 2015… e eu estava em Portugal quando soube do centenário da Revista Orpheu. Embarquei em um Comboio rumo a Lisboa para visitar a Casa Fernando Pessoa e participar dos eventos comemorativos da famosa Revista Orpheu — orquestrada por Fernando Pessoa e seu cúmplice no crime Mário de Sá-Carneiro — responsável por introduzir em Portugal… o Modernismo — movimento que, por aqui, vingou para a realidade através da controversa Semana de Arte Moderna, em 22. 

O exemplar de número 01 surgiu para o mundo como se não fosse um acontecimento grandioso. Parecia ser uma publicação que sempre teve seu lugar nas mãos de meninos que a agitavam no ar, anunciando alguma novidade “leiam, leiam… Pessoa escreveu um novo poema” — sem conseguir, no entanto, atrair a atenção de ninguém.  

E ainda assim… afirmam-se os homens da história que, nenhuma das vanguardas europeias da época — do futurismo, por muito influente que tenha sido, passando pelo movimento vorticista lançado pela revista inglesa Blast (1914-1915), onde colaboraram Ezra Pound e T. S. Eliot, até ao mais tardio ultraísmo espanhol — conseguiu, como Orpheu, “revolucionar” uma “literatura nacional”. 

Cá estamos sempre. Orpheu acabou. Orpheu continua”… escreveu o Homem-Pessoa sobre o fragmento datilografado em que recusava adjetivos vários atribuídos a Revista e a ele também. Para Pessoa ser modernista não tinha qualquer significado… não fazia sentido.  

É que Orpheu, meus senhores, foi o primeiro grito moderno que se deu em Portugal”, escreverá Almada Negreiros no Diário de Lisboa, em Março de 1935, num texto em que evoca os 20 anos da revista, quando Sá-Carneiro já havia morrido há muito e a Pessoa restavam poucos meses de vida.

Os artistas que participaram dos dois exemplares da Revista — os “putos” de Orpheu, como eram chamados na época —,  pertenciam cada um à escola da sua individualidade própria, não lhes cabendo, portanto, designação alguma coletiva… mas, não se pode deixar de afirmar que os colaboradores de Orpheu foram uma espécie de escola literária de vanguarda — modernista! 

O que é certo na Orfeu, é a variedade e o dinamismo que todo o grupo dos ‘modernistas’ representou.  Nenhum daqueles que assinou o primeiro número da revista ficou agarrado a um ideal estético fixo e imutável — com a relativa exceção de Sá-Carneiro que só viveu mais um ano —, todos evoluíram ou recuaram — sem deixarem de ser ‘os de Orpheu’…

Mas quando a revista saiu, se não passou de todo despercebida, também não se pode dizer que tenha sido propriamente saudada como decisivo marco literário e cultural que efetivamente foi. 

A crítica afiada tratou de rotulá-la… De “Literatura de manicômio” e tanto Fernando Pessoa quanto Mario de Sá-Carneiro — sem os quais Orpheu não teria passado de uma curiosidade cujo centenário ninguém se lembraria de comemorar —, teriam de esperar uma dúzia de anos até serem reconhecidos pelo feito.

Tendo sido a mais icônica revista literária portuguesa de todo o século XX, e seguramente a que exerceu uma influência mais duradora, Orpheu foi também uma publicação efêmera, com apenas dois números publicados no primeiro semestre de 1915. O terceiro, já em provas tipográficas, não saiu por falta de financiamento e só veio a ser publicado em meados dos anos 80, num fac-símile em edição organizada por Arnaldo Saraiva.   Mas se desse lado do oceano, a crítica calou os pincéis e o talento da jovem e tímida Anita… do lado de lá foi combustível nas chamas.

Fernando Pessoa e Sá-Carneiro responderam à altura todas as críticas recebidas. Convidaram loucos com pedigree para compor o segundo exemplar de Orpheu — publicado no final de Junho de 1915. Lá estão os poemas de Ângelo de Lima… um louco certificado e residente do Manicômio Miguel Bombarda de 1902…

E, com o objetivo de espantar a burguesia letrada de Lisboa, a dupla de conspiradores chegou a ponderar incluir, no Orpheu 3, umas Pilhérias em francês de Numa de Figueiredo — amigo de Pessoa… um negro nascido em Angola, formado em Letras em Lisboa. A idéia era de que Pilhérias iria bater o recorde do cosmopolitismo: preto português escrevendo em francês.

Orpheu começou a surgir em 1911, quando Pessoa passa a sonhar com uma Revista a que pensa dar o nome de Lusitânia, um projeto que evoluirá para algo sensacionalista e com outro nome Europa assim que conhece Sá-Carneiro, que também tinha suas próprias idéias audaciosas. O nome Orpheu foi oferecido por Luís de Montalvor, que regressa do Brasil, trazendo na mala um projeto particular de revista.  

Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro eram dois espíritos diferentes e improvavelmente sintonizados que tornou possível Orpheu… um mito não apenas para nós, seus admiradores tardios, mas, também para os mais lúcidos de seus colaboradores.

dois números


Publicados em março de 1915

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!// Hup lá, hup lá, hup-la-hô, hup-lá!/ Hé-há! Hé-hô! Ho-o-o-o-o!/ Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!// Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!” — estes versos finais dum poema intitulado Ode Triunfal, assinado por um tal Álvaro de Campos, fechavam o primeiro número da revista Orpheu, que no dia 24 de março de 1915, saía dos prelos para escandalizar os meios culturais portugueses.

Setembro Scenarium

Olá,

E chegamos a Setembro, um dos meus meses favoritos no calendário dos humanos. Para quem não sabe, antigamente, era o sétimo mês do calendário antigo. Daí o nome setembro – september ou septembre… Foi o que serviu de inspiração para o título do meu Diário das 4 estações — Setpum, publicado em 2016… ao lado de Cadedos abertos, de Mariana Gouveia e A construção da primavera, de Adriana Aneli que fará parte do primeiro kit de primavera da Scenarium

03 livros por R$ 45,00