Conto, novela ou romance?

Quando eu decidi virar a página da minha realidade, migrando da psicanálise para a literatura… eu tinha uma certeza: iria escrever um romance. Mas, quando se pronunciei essa frase em voz alta, nem desconfiava que existia um sem-fim de diretrizes penduradas nela.

Tem gente que pensa naqueles livros intermináveis e pesados… com não sei quantas mil páginas. Enquanto outros, lembra-se daquelas leituras — obrigatórias — do tempo do colégio. Livros esquecidos em prateleiras… Eu pensava apenas na narrativa e no desafio que seria me dedicar a esse projeto-de-vida.

Mas, para quem está atracando na realidade literária agora, vale prestar atenção no que diz o vasto universo da literatura a respeito dos diferentes tipos de gêneros disponíveis: conto, novela e romance.

Vamos lá…

Conto

É uma narrativa curta que apresenta todos os elementos tradicionais e essencias de uma boa história: personagens, tempo, espaço, enredo e que se encaixa em qualquer gênero, como: ficção científica, policial, fantasia…

Se alguém me perguntasse, por onde eu começo: eu não titubearia em dizer: pelo conto porque é uma excelente maneira de um Autor se inaugurar no mundo literário. Você terá menos trabalho e conseguir ver o resultado da sua narrativa num espaço curto de tempo. Não quer dizer que será fácil e vai dominar o gênero em dois paragráfos. Mas te dará a exata noção das suas dificuldades e aprenderá com elas.

Uma explicadação rápida para você saber onde está pisando: o conto se caracteriza por apresentar um único conflito… o que permite que a gente se dedique a um acontecimento relevante e um clímax.

Nos cursos que ministrei, percebi que muitas pessoas confundiam conto com crônicas — gêneros totalmente diferentes. A crônica é uma opinião — quase sempre bem humorada — de um fato cotidiano e costuma ter prazo de validade curto. Embora no Brasil, crônicas escritas nos anos 1940 continuam atuais, como se tivessem sido escritas pela manhã. Mas não era para isso acontecer. É a velha mania das pessoas reciclarem temas, requentando-os… alguém aí, gosta de café frio?

Voltando aos contos… é um gênero que aceita diálogos entre os personagens. Mas não admite opinião do autor que pode ser ou não o narrador da história. A escrita ocorre na primeira ou na terceira pessoa do singular. Mas em momento algum pode fugir do objetivo principal do conto que é contar a história.

É o contrário da crônica, onde você pode esbravejar com o mundo, deixando claro o que você pensa e sente a respeito dos “patriotas acampados na porta do quartel“… porque a crônica é um gênero que acomoda uma crítica bem feita… e você pode soltar o verbo. Esbrejar contra o mundo. Soltar os cachorros. Só não pode esquecer que, ao fazer uso da sua liberdade de expressão, não pode ofender ou agredir pessoas com o seu linguajar. Seja elegante… sempre! É a base da literatura…

No conto você precisa ser objetivo… não dar informações desnecessárias a respeito da história, não se perder e usar uma linguagem simples e natural, o mais próximo possível da sua fala cotidiana. Não inventa de incrementar o seu vocabulário. Ninguém quer ler uma história com um dicionário do lado. A idéia é se devertir com uma narrativa gostosa, que te pega pela mão e te leva para outros lugares. Uma viagem, é o que você propõe ao leitor.

Novela

Eu costumo dizer a quem me pergunta: que Novela é um conto que ficou muito grande, mas que não conseguiu ser um romance. E toda vez que digo isso… caiu na risada porque não é tão simples, mas é uma maneira rápida de definir o gênero.

A novela tem vários personagens que giram ao redor do protagonista, que é a razão da história. O ritmo da narrativa é mais acelerado e as cenas são muito importantes para esse gênero, por isso são facilmente adaptáveis para o teatro, cinema ou televisão.

No Brasil é comum as pessoas confundirem o gênero literário com as teledramaturgias produzidas pela Rede Globo que são vendidas como: novela — palavra mais simples que teledramaturgia. Você consegue imaginar o público dizendo: vou assistir a teledramaturgia das seis-sete-nove? Nem eu… Mas assistir uma boa novela produzida pela emissora te ajuda a compreender esse gênero. Na hora de criar os núcleos e as cenas.

E há um critério muito equivocado usado para determinar o gênero novela: a quantidade de páginas. Dizem que é uma espécie de limar entre cem a duzentas páginas.

Perdão Jane Austen! Eles tem essa mania de montante de páginas.

Romance

E chegamos ao gênero que eu considero o mais importante porque é o meu favorito e, sem dúvida, é mais conhecido quando se trata de literatura. Apesar do nome, aviso que história de amor não é uma exclusivamente do gênero. Romance é uma definição dada a narrativas extensas, com variados temas e seis arcos narrativos:: exposição, conflito, ação ascendente, clímax, ação descendente e resolução.

O romance apresenta muitos personagens, contando com protagonistas, antagonistas e personagens secundários — com arcos dramáticos próprios. Há inúmeros conflitos, clímax e reviravoltas.

Você precisa ter total conhecimento da vida de seus personagens. Definição dos protagonistas e antagonistas e consciência do foco narrativo: declinio, ascensão, complexa, dramática. Esse foco não pode, nem deve mudar ao longo da história. E o autor precisa deixar claro desde o primeiro parágrafo para onde vai conduir o leitor.

Para cada foco narrativo, há exemplos na literatura universal. De Flaubert e sua Madame Boavary à Jane Austen e seu Orguho e Preconceito. Romeu e Julieta de Shakespeare. Orlando de Virginia Woolf. Frankenstein de Mary Shelley — para citar alguns livros que você pode ler para se localizar na realidade literária e seus estilos…

Claro que fiz aqui um resumo… apenas para situar as diferenças existentes entre contos, novelas e romances… Recomendo que experimente cada um dos gêneros em suas leituras. Um conto delicioso de ser ler é O Gato Preto, de Edgar Allan Poe, um dos melhores nesse segmento. No gênero novela, eu recomendo a mestra Jane Austen e seu pitoresco Razão e sentimento (com tradução de Lygia Fagundes Teles) e o excelente romance: A elegância do ouriço, de Muriel Barbery…

E se quiser conversar a respeito… temos o nosso Clube de Escrita da Scenarium, onde discutimos e realizamos exercícios de escrita. Vem com a gente, os nosos encontros acontecem às segundas, das 20 às 22 horas — online…

CASA de vidro  | Dona Ioiô

Iolanda era uma exímia dona de Casa e excelente cozinheira. Não havia uma única festa de aniversário na cidade em que morava desde o nascimento… sem o seu famoso bolo de fitas, em camadas.
Tudo era segredo na cozinha de Ioiô que não revelava nada a ninguém e fazia tudo sozinha, acumulando responsabilidades. A sua barraca de doces era a mais visitada na quermesse da Igreja, durante as festas da Padroeira, para desconforto do Padre que considerava tudo que aquela mulher fazia um pecado. Os seus quitutes eram disputados nas festas da Escola Municipal, onde estudou — apenas o suficiente para ser esposa e mãe.
Iolanda foi escolhida — aos dezesseis anos — por Darci, durante a missa de domingo… Era uma moça bonita e estava na idade certa. Tinha um belo rosto. Mas foram os belos joelhos que atraíram o olhar do rapaz, que cursava administração na cidade vizinha. O pedido foi feito pelo pai do moço e aceito pelo pai da moça. Casaram-se no ano seguinte.

O pai entregou a noiva com satisfação, transferindo a responsabilidade para o noivo. Presenteou o jovem casal com uma de suas casas — iguais — na famosa Avenida da Saudade, que era o endereço do único cemitério da cidade e virou motivo de piada entre os amigos do noivo. O casamento deu novo status a Darci, que ganhou a confiança do dono da principal fábrica da cidade. Muito responsável, passou a gerenciar o lugar, para inveja de alguns. O primeiro filho — varão — veio ao mundo dois anos depois. Dois anos depois… veio o segundo. Darci não escondeu a decepção… Queria uma menina. Considerou, no entanto, que na próxima tentativa… teria a sua menininha. Não aconteceu. Ao observar os casais de amigos com seus muitos filhos, Iolanda decidiu que estava satisfeita com seu casal de meninos. Havia aprendido com as mulheres de sua família que, quando a mulher não quer, os filhos não vêm.

Iolanda era mulher sensitiva, sempre dizia suas rezas e tinha os seus cuidados. Escolhia ervas no quintal para dores, quebrantos. Fazia seus patuás… tudo às escondidas, porque o marido — católico fervoroso — não admitia benzeduras e não tolerava simpatias. Mas, ao sair de casa, benzia-se… e ao voltar, repetia o ritual do sinal da cruz no peito, pedindo bênçãos ao pai, o seu Criador. De passagem pela porta, saudava a imagem da santa e agradecia por tudo que tinha. Acendia uma vela às segundas e às seis horas em ponto, parava tudo que estivesse fazendo para rezar a ave Maria. Confessava os seus pecados — semanalmente — ao Santo Padre, de quem recebia a hóstia sagrada. O homem se sentia um verdadeiro filho de Deus aos domingos.

Iolanda não via diferença alguma naqueles rituais cristãos dos que havia aprendido com sua avó, na infância.

O marido obedecia — sem titubear — quando a mulher pedia para evitar o traçado percorrido de casa — onde moravam — até a fábrica, ao sair. Na única vez que deu de ombros aos avisos da esposa, complicou-se… para nunca mais.

— Querido, passe na farmácia do seu Nelson, na ida. Preciso da pomada e na volta do trabalho, estará cansado. Poderá não se lembrar.
— Tem razão, querida…

Era tudo que precisava para ter paz e a certeza de que nada lhe aconteceria. O filho mais velho não ousava desobedecer aos conselhos da mãe e era o autor do mantra repetido na família:

se dona Ioiô avisar, melhor não ignorar

Ioiô era conhecida por sua sensibilidade e, toda vez que sentia arrepios, quem estivesse por perto… se benzia. O padre se incomodava, mas se aproximava para saber se estava tudo bem. Nesse dia, não estava. Iolanda abandonou os preparativos para os festejos de Cosme e Damião, sem dizer palavras, pegou as suas coisas e saiu correndo.

Chegou em casa junto com a notícia…
O marido havia sofrido um infarto.

O padre aproveitou o discurso de despedida para culpar Iolanda. Disse ser uma punição de Deus e fez questão de relembrar os alertas que fazia quanto ao perigo das rezas proibidas, dos ingredientes secretos e das suas feitiçarias. Ela ouviu tudo quieta, ao lado dos filhos, que seguravam as suas mãos, um de cada lado… Odiaram as palavras do padre, mas não reagiram em respeito à mãe.

— Esse aí pensa que é Deus. — murmurou o mais velho.
— Para mim parece o diabo. — respondeu o caçula num tom quase inaudível.

Durante o cortejo pelas ruas do cemitério até o túmulo, os meninos perceberam as conversinhas de ouvido. E depois do enterro, viram as pessoas se afastarem de Ioiô, que passou a ser mal falada na cidade.

— Cabeças erguidas, meus meninos. É assim mesmo, agora a mãe de vocês é uma triste e pobre viúva. Uma mulher sem marido não tem valor, tampouco direito à vida. O certo seria morrer com o marido.
— Não, mamãe. — Resmungou o caçula, grudando no corpo da mãe.
— É o que pensa essa gente, meu querido, mas eu estou aqui e vou cuidar de vocês. Não se preocupem que Ioiô ainda vai viver muito.

Iolanda cumpriu seu luto…
A casa foi desbotando com ela.
As flores do jardim secaram.
A tinta descascou…
E as lendas se multiplicaram ao seu redor… Com o passar dos dias!

Reclusa, dependia dos seus meninos, que cuidavam dos afazeres nas ruas. O mais velho foi para a faculdade e o caçula seguia enfrentando os desaforos no colégio…. Como era bom de briga, escapava com agilidade dos socos e acertava a cara dos rivais — como se fosse um dardo lançado contra o alvo. Com medo da lenda que corria pela cidade — a respeito da mãe do menino —, o Diretor nada fazia, apenas o repreendia, com tom de voz grave e com o dedo em riste… numa visível tentativa de intimidar o garoto:


— Que isso não se repita!


Iolanda se cansou do comportamento dos moradores de sua cidade ao receber um bilhete do Diretor, que repreendia o seu filho pelo comportamento e pedia que melhorasse a educação do menino. Furiosa, foi espiar a vizinhança através das cortinas de seu quarto e, ao reparar no padre em conversas com seu rebanho… decidiu agir. Acordou mais cedo no dia seguinte e fez todos os afazeres da casa… serviu o café da manhã para os filhos e esperou até irem para a escola.

Escolheu um disco de tango — o favorito de sua avó — e colocou para girar na vitrola. O som se espalhou por todos os cômodos. Preparou uma xícara de chá de ervas e foi se sentar à mesa da cozinha. Reagia como se tivesse emprestado o corpo para o espírito da mulher de quem herdou o nome… Embaralhou as cartas com calma, organizando os pensamentos e as espalhou — uma por uma — por cima da mesa. Ao virar a primeira carta… gargalhou tão alto, que foi ouvida por toda a vizinhança, que se benzeu pedindo proteção aos céus.

Iolanda abriu uma das gavetas do armário, pegou o velho caderninho onde anotava a lista de coisas que precisava comprar e escreveu um bilhete que o caçula foi entregar nas mãos de dona Filomena, conhecida por acomodar o corpanzil na janela, assim que o marido saía para o trabalho.

Ela acendia o cigarro e pronto…
Ficava sabendo de tudo que se passava na vizinhança.
E o que não descobria… inventava.
O padre a repreendia pelo comportamento — durante as confissões — mas só depois que bebia de sua inesgotável fonte.
E Filomena se sentia perdoada…
Após rezar seus paisnossos muitos e avemarias tantas.
Quando não estava de bom humor ou a fofoca não era das melhores, o padre a mandava rezar o terço inteiro.
E o tal bilhete de Iolanda provocou enorme alvoroço em Filomena, que pensou em não ler. O deixou em cima da mesinha da sala, entre os sofás e a televisão. Passava por ali a caminho da janela, mas como nada acontecia naquela manhã, só conseguia pensar no que dizia o tal pedaço de papel muito bem dobrado. Tentou evitá-lo, mas não conseguiu. Sentou-se no sofá, desdobrou o papel e leu as malditas palavras escritas com caligrafia fina:

Amiga Filomena,

Venha à minha casa, assim que possível e, por favor, seja discreta, preciso lhe falar. Assunto de seu interesse…

Ioiô.

— E desde quando eu sou amiga de bruxa? Desgraçada. Não vou. Ela deve estar querendo o meu mal. Minha Nossa Senhora das almas sem sossego, me valha.

Filomena fez o papel em pedaços, jogou na privada e deu descarga, cuspindo seu horror três vezes. Arrumou as camas, varreu a casa, lavou a roupa e as pendurou no varal. Preparou o almoço e quase queimou o arroz tamanho o desassossego que crescia em seu íntimo. Preocupada, mal conseguiu fazer a refeição. Disse ao marido que estava um pouco indisposta por causa do calor e avisou que iria se deitar um pouco. Depois que ele saiu, livrou-se dos filhos e arrumou-se, decidida a ir à casa de Iolanda. Compreendeu, ao empurrar o portão daquela casa — amaldiçoada por Deus — o motivo de seu Darci benzer-se ao entrar ou sair. Fez o mesmo — três vezes — para evitar o pior. Estava pronta para bater na porta, quando Iolanda — em trajes ciganos — a recebeu com um enorme sorriso de boas-vindas.

Filomena ficou impressionada…

Havia anos que não colocava os olhos naquela mulher, que não havia envelhecido um único dia. Só pode ser coisa do diabo — pensou… Ela deve ter feito um pacto com ele e o preço foi a alma do marido. Pobre homem. — concluiu, aceitando o convite para entrar. Observou que a casa cheirava a chá e bolo — o que a fez se lembrar das festas de aniversário da cidade. O bolo feito por Ioiô era personagem principal e como era gostoso. Filomena era a primeira da fila para pegar um generoso pedaço e levar para casa. Reparou de passagem que tudo estava muito bem cuidado. Da mobília lustrada ao piso encerado, contrariando o que se dizia na cidade. Não havia nada quebrado ou coisas estranhas pelas paredes. Era uma casa igual às outras.

Boquiaberta, seguiu Iolanda pelo corredor, repleto de fotos da família… alguns ela reconheceu, outros não. Mas sabia da origem de Iolanda — bisneta de espanhóis. Os rumores diziam que era uma família cigana, que vagava pelo mundo antes de chegar à cidade. Nada nas fotografias apontavam para isso. As pessoas em preto e branco pareciam meros camponeses. A mesa no quintal dos fundos estava posta… toalha vermelha e uma bandeja com bule e xícaras.

— Sente-se… aceita um chá de cidreira? Colhi há pouco e faz bem para os nervos. Ajuda a se acalmar…
— Eu vou aceitar. Obrigada. — era tudo que precisava naquele momento: se acalmar — Iolanda, por que me chamou aqui? Fiquei preocupada… Aconteceu alguma coisa.
— Não fui eu quem a chamou, querida amiga. Foram as cartas…

Filomena inquietou-se na cadeira com a resposta. Não entendia nada de cartas, mas tinha ouvido falar a respeito. Uma das amigas tinha ido a uma cartomante na cidade vizinha. Depois de servir o chá e uma generosa fatia de bolo… puxou o baralho — Filomena nem viu de onde — e espalhou três cartas por cima da mesa.

— Veja! É exatamente a mesma resposta…

Filomena olhou bem de perto. E desejou se benzer mais três vezes. Talvez seis. Mas não o fez. Estava com muito medo de Iolanda… Que parecia ter movimentos típicos de uma naja.

— As notícias não são boas…
— Minha nossa senhora das pessoas aflitas, me ampare com o seu poderoso manto. — Murmurou, quase desfalecendo.

Por sorte, estava sentada ou teria ido ao chão.

— Você foi ao médico recentemente, querida amiga.
— Sim, eu fui, — respondeu aflita — fui fazer alguns exames, coisas de rotina. Nada grave.

Filomena ficou incomodada, não tinha contado a ninguém — apenas ao marido. Estava sentindo calores… o corpo parecia estar em chamas e, às vezes, era muito difícil respirar. Sabia que era coisa da idade e por isso decidiu ir ao médico. 

— O que está vendo?
— Eu sinto muito, minha amiga…
— O que é? Eu vou morrer? É isso? Diga de uma vez. — desesperou-se.
— Muito pior, minha amiga. Mas você pode evitar…
— Como? O que tenho que fazer? Diga, minha amiga, por favor. Faço o que for preciso.
— Eu vou lhe ajudar, não se preocupe. Direi tudo o que terá de fazer para quebrar o mal que lhe enviaram…

Filomena apertou bem os olhos… Enumerou nomes em sua mente. A lista de desafetos era grande… Mas um único nome se destacava. E ela sabia que aquela criatura seria capaz de lhe desejar a morte ou coisa pior.

— Eu farei tudo que disser, minha querida.

Filomena havia perdido o medo. Segurava nas mãos de Ioiô com todo o seu fervor, como costumava fazer com o Padre… aquele Santo homem. E, ao sair da casa de Ioiô, correu até a Igreja — alvoroçada com tudo que tinha escutado — para contar ao santo homem, que ao ouvi-la, benzeu-se, preocupado.

— Minha filha, se apegue com Deus que ele irá protegê-la. Se ele é por nós, ninguém será contra nós. Mas, depois de tudo o que disse, e você sabe que não acredito nessas feitiçarias dessa mulher, creio que seja melhor fazer o que ela pediu. Afinal, se trata de caridade e esse chá de folhas, durante sete dias. Não há mal nisso. Mas não vá comentar isso com mais ninguém, minha filha.

Filomena concordou… Seguiu à risca todas as orientações de Ioiô. E como nada lhe aconteceu. O resultado dos exames apontaram que sua saúde estava perfeita e até os calores cessaram. Acreditou que Ioiô a salvou do pior. Como agradecimento, mandou uma linda cesta de flores e frutas para a casa da querida amiga. Contrariando o padre, Filomena espalhou a notícia aos quatro cantos da cidade… E quando um novo bilhete foi entregue pelo caçula de Iolanda a outra moradora, a mulher se arrumou e correu para visitar Ioiô. Aceitou o chá, a fatia de bolo, olhou as cartas e aguardou pela tradução daqueles desenhos sem sentido ou significado.

Dona Ioiô tinha contato com o mundo oculto… Recebia avisos de malfeitos e encantamentos que precisavam ser quebrados e, alma caridosa que era, se dispunha a ajudar a ensinar como se proteger. O padre, em suas andanças por aquela rua, observava a velha casa com ódio. A mulher que ele havia difamado tornou-se figura respeitada, em pouco tempo. Recebia visitas frequentes… Com ou sem bilhetes. Mesmo que tudo estivesse bem, as mulheres procuravam por proteção e ela não se recusava. Ele tentou — durante as missas — alertar do perigo que era aquela casa-mulher. Mas não conseguiu contaminar o rebanho, que havia beatificado Ioiô, sem a sua autorização. Filomena contava — em meio a um pesado trago de cigarro — que a única pessoa que havia se recusado a ir até lá, fazendo em pedaços o bilhete de dona Ioiô — obedecendo ao padre — tinha morrido durante a refeição, sentada diante de toda a família… engasgada com um pedaço de pão.

— Dona Ioiô mandou bilhete. E ela fez o que? Ignorou. Deu no que deu. Eu só recebi uma vez e fiz tudo que ela me aconselhou. Estou aqui, bem viva, saudável e sem os tais calores — cochichou —, e meu marido e filhos estão todos bem.
— Nunca recebi bilhete — disse uma das vizinhas, benzendo-se —, mas fiz visita a dona Ioiô… e levei um presentinho. Ela ficou tão satisfeita que colocou as cartas para mim. E a mulher é danada, viu? Acertou tudo o que me disse.
— Comigo também foi certeira. Eu bem que estava desconfiada que tinha uma víbora tentando dar o bote no meu marido. Ioiô confirmou e disse o que fazer para cortar a cabeça da maldita cobra. E eu fiz tudo direitinho. Comprei as peças vermelhas — murmurou, fingindo vergonha — e ao tirar a camisola pedi a ele que passasse a loção de ervas, no meu corpo todo.

As mulheres quiseram detalhes da loção poderosa… interessadas em manter a santidade do casamento, principalmente entre as quatro sagradas paredes do quarto.

— Acho que vou levar um presentinho para Ioiô, no final da tarde. Não custa nada agradá-la, quem sabe ela me recomenda essa loção maravilhosa.
— Sem falar que ela sempre serve uma fatia daquele delicioso bolo de fitas. E, de repente, ela põe as cartas para mim…
— Está sentindo alguma coisa, Filomena?
— Não! Mas da outra vez foi uma cascavel quem me desejou mal, vizinha… e ela andou passando na minha porta. Todo cuidado é pouco.
— Você está certa! Melhor se prevenir porque essa cidade está cheia de cobras.

Lunna Guedes... sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecia o outono em qualquer hemisfério e escreve por escrever somente, às vezes na própria pele ou nas paredes do corpo, por dentro… Gosta de caminhar e contar os passos e de ser perder de si e do mundo alheio… às vezes, atende por Catarina!

CASA de vidro  | O padre da cidade

Ambrósio sempre se interessou por Biologia… E a Zoologia era o ramo que mais o atraía. Quando ficava sozinho na Casa Paroquial, livre das bajulações de ajudantes e o assédio das beatas, chegava a rir da comparação que fazia ao se imaginar especialista em ofídios.
Filho da cidade, conhecia intimamente os habitantes do serpentário. Cresceu ouvindo as histórias verídicas… e inventadas pelas espécimes do local — o que não importava — já que os efeitos eram os mesmos, em sentidos contrários: exaltação ou execração dos envolvidos.
Quanto mais inverossímeis os casos sibilados, mais ganhavam credibilidade. Por isso, ainda que fossem confissões a Deus por seu intermédio, desconfiava do que ouvia.

O religioso era um cético.

Quando garoto, costumava percorrer os lugares mais ermos do município, mato adentro, para observar os animais em seu habitat natural. Tinha interesse em todos — pássaros, insetos, roedores pequenos, peixes, cobras e felinos, mais raros. Certa ocasião, viu uma onça — um ser mágico e majestoso. Percebia a mão de Deus no equilíbrio do bioma sem interferência da mão humana.

Mas o que o impressionou para o resto de sua vida foi a visão, quase um sonho, de uma humana, Iolanda, banhando-se à beira do rio, junto às amigas.

Entre as quatro ou cinco meninas, a luz do sol entre os arvoredos foi repousar nos cabelos molhados da moça que ondeava, ria e brincava como se fosse o vento em forma de gente. Estavam em trajes menores e acostumado desde bem pequeno a se apartar das mulheres por imposição da mãe, que o havia prometido para a vida monástica, sentiu o corpo inteiro incendiar-se.

Apaixonado, via Iolanda crescer cada vez mais bonita, frequentando o seu olhar tanto na escola quanto na Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, para quem rezava fervorosamente. Sua mãe percebeu esse crescente interesse do adolescente que desejava santo e não via a hora que fosse fazer o curso de Teologia no Seminário, de onde sairia pronto para se dedicar à piedosa profissão da fé em Cristo.

Quando um intruso mais velho, Darci, conseguiu a permissão de noivar a sua amada Iolanda, percebeu que ser padre era o que lhe restava. Sentia-se uma ovelha em sacrifício — uma oblação — para aplacar a ira divina sobre sua mãe. Seu rancor por ela se iniciou ali.

Ambrósio, em costumeiras reminiscências, ouvia a voz daquela que lhe gerou aconselhando a manter distância daqueles seres inconcebíveis — as fêmeas — motivo de tragédias e louvações, competindo com o santo caminho de Deus. E, se colocar bem distante de Iolanda, filha de uma mulher da qual ela não gostava. Soube mais tarde que as duas foram rivais na atenção do seu pai. Formado padre, antes de morrer, confessou ao filho que engravidou antes de se casar, o que precipitou o pedido daquele a quem se entregou.

Um casamento realizado às pressas.
Para se redimir diante de Deus, ofereceu o filho à Igreja. Mal conseguiu lhe conceder perdão no seu leito de morte.

Padre da cidade, posição que não desejava, mas que a insuspeita influência de sua mãe intercedeu para que assim o fosse, muitas vezes se esquecia de seu próprio nome. Ou fazia questão de esquecer, porque sempre que o ouvia era na voz dela. Até que deixou de ser dito e passou a ser conhecido apenas pelo título: Padre. Muitos de seus fiéis o conheciam desde que nascera. Chamá-lo apenas de Padre talvez tenha sido uma maneira de tornar impessoal a relação com o religioso. Uma providencial barba fez com que os conterrâneos se esquecessem do rosto da criança calada, nascido da beata mais dedicada da cidade.

Não duvidavam que fosse um homem consagrado à Deus. Abriam os seus corações ao vigário que carregava o peso de tantas, variadas, pequenas e abjetas maledicências. Um fardo que carregava e que apenas era aliviado quando voltava do encontro com seu padre confessor. 

Para seu suplício, Iolanda nunca se confessava.
Guardava para si a única vez com que falou com ela, na sala de aula. Tímido, pediu a borracha emprestada. Ao ouvir o seu nome dito com todas as letras: “I-O-L-A-N-D-A” …sorriu luminosamente e devolveu: Pode me chamar de Ioiô, como todo mundo.

Guardou esse momento como se fosse um tesouro precioso. Mas para não se sentir como todo mundo, de si para si a chama de Iolanda. Mas nunca pronuncia o doce nome em voz alta. Para sempre dedicaria a ela uma forma de amor reverso. Ao atacá-la, maldizendo as suas práticas estranhas e comportamento pagão, queria chamar a sua atenção.

Mas a menina exuberante, a moça equilibrada,a mulher forte que conheceu nunca se deixaram atingir. E agora, parecia que ela estava se tornando uma rival no seu campo de atuação — o da crença. Não bastava o avanço das crendices espúrias de origem africana e a invasão paulatina do protestantismo?

Um dia, o Padre acordou numa piscina de suor. Os lençóis, as fronhas dos travesseiros, a leve coberta, totalmente úmidas, impressionaram a senhora que cuidava da limpeza e arrumação da casa paroquial. Ela não tinha tanto trabalho assim.

O Padre era um homem regrado, de hábitos frugais. Apenas as roupas que ele usava fora da atividade religiosa — em seus passeios pela mata — ficavam cheias de asas de insetos, marcas de sangue nas mangas de camisas, espinhos e ramos de plantas grudadas nas calças jeans.

E foi justamente na volta de uma dessas expedições que Ambrósio voltou perturbado.

Havia encontrado Iolanda na beira do rio, como há quase quarenta anos. Ela parecia orar para as águas claras e calmas que vibravam em vida esverdeada pelo entorno. Nua, parecia um ser etéreo, fora deste mundo. Duvidou dessa visão, porque parecia ter entrado em transe. Naquela noite, sonhou que Iolanda havia gerado um filho seu. Ouviu o choro da criança e a sua amada, em sorrisos, sacando uma das suas belas e fartas tetas, oferecendo ao menino, que a abocanhava com sofreguidão. Em dado momento, era ele que estava em seu colo, a sugando, com desejo.Despertou sem saber se tudo que havia vivido naquele dia não fazia parte do mesmo sonho. Mas as roupas colocadas para lavar confirmavam que tivesse saído. Atônito, chorou por sua vida toda, imposta desde o início por outra pessoa que não ele.

Seria um feitiço da Bruxa? 

Sentir-se-ia perplexo se soubesse que do outro lado da pequena cidade, Dona Ioiô, a sua Iolanda, tinha tido o mesmo sonho…

Obdulio Nuñes Ortega… deu-se que refugiados da Guerra Espanhola aportassem no Brasil e dentre seus frutos, uma moça uniu-se a um gentio da terra nova, refugiado do sul do continente. Geraram um brasileiro desorientado do sentido da vida e desequilibrado por força da Balança que o rege. Supera seus íntimos mistérios, os expondo a quem quiser lês-los, no cenário da palavra. Acredita ser escritor, o melhor que puder ser tendo como base a si mesmo. Espera não alcançar a eternidade, mas sabe-se infinito. 

CASA de vidro  | A sobrinha

Iolanda tinha três sobrinhas, filhas de sua irmã que, desde o casamento, morava no litoral. Separadas por cerca de 400 km, viam-se pouco. Rosa, a mais velha, mudara-se de cidade, com seu marido. Com grande esforço, conseguira fazer o curso primário. Dona de muita sensatez, tinha a mesma sensibilidade de sua tia, por quem tinha grande admiração.

Muita gente recorria a ela. Em uma de suas visitas a Rita, interrompeu repentinamente a conversa e dirigiu-se ao quintal, indo até um canteiro de hortênsias ao pé do muro e, feito um bicho, começou a cavar com as próprias mãos. Encontrou um embrulho feito com pedaço de papel, todo amarrado com uma cordinha fina, cheia de nós. Foi até a churrasqueira, e queimou seu achado. Tudo em silêncio, o rosto denotando concentração. Concluiu que a autoria era de uma mulher mal intencionada que manipulava Rita com a maior tranquilidade.

A família toda respeitava Rosa e suas premonições. Rosa e a irmã Rita eram muito unidas, tinham muita coisa em comum. Casaram-se jovens e tiveram filhos logo. Falavam-se com frequência. Visitavam-se e ajudavam uma à outra. Rafaela, a mais moça, era diferente. Tinha feito carreira universitária. Era uma moça muito curiosa. Sabia de tudo um pouco, o que exasperava a mãe e provocava nas outras duas um certo desconforto quando se encontravam. Achavam-na antipática. Uma exibida, metida a besta. Acostumaram-se a deixá-la de lado.

Rafaela casou-se anos mais tarde — para a surpresa das irmãs, que davam como impossível alguém escolher uma pessoa tão desagradável. Por coincidência, os três maridos compartilhavam as opiniões e sentimentos das esposas. Na tentativa de fazer a irmã ser mais sociável, Rosa decide usar de seus dons e telefona a Rafaela.

— Sonhei com papai esta noite, ele estava muito preocupado com você. Está tudo bem?

Não era a primeira vez que Rosa telefonava para falar de seus sonhos. Com voz suave e calma deu continuidade ao seu intento.

— Rafa, você tem o coração muito duro, tem que amolecer um pouco, não pode ser assim!

Rafaela não sabia se ela se referia a uma rusga que tivera com a mãe ou a um desentendimento com Rita. Não importava argumentar, Rosa continuava a bater na tecla de que não se podia ter o coração tão duro. Rafaela deu de ombros… não fazia parte do grupo que confiava na sensibilidade da irmã, que insistia para que adoçasse seu coração, quando na verdade queria que ela cedesse aos interesses delas. E Rafaela tinha suas preocupações. Estava aguardando o resultado de seus exames: uma biópsia, após a mamografia anual, teve resultado positivo, exigindo cirurgia e pesando-lhe emocionalmente. Enquanto se recuperava, precisou lidar com a ruptura familiar provocada pelas eleições. Os filhos de Rita e de Rafaela entraram em conflito e a mãe das meninas escolheu bem o momento para ter mais um chilique. Muito idosa, tinha sérios problemas de saúde, físicos e mentais, que ficavam sob a responsabilidade da caçula, dificultando a sua vida profissional. As três irmãs estiveram juntas na casa da mãe. Foi muito rápido, mas a proximidade física deveria ter permitido a Rosa uma percepção muito nítida. Até pessoas desprovidas de sexto sentido percebem quando a pessoa que encontram não está bem.

Rafaela esperou, curiosa se haveria outro sonho com o pai. Mas Rosa permaneceu longos meses em silêncio. E ao telefonar — tempos depois para falar de um sonho, dessa vez com a tia Iolanda, que estava sentindo saudades da sobrinha e demonstrava muita preocupação com seu coração de pedra.

Rafaela não esperou que a irmã terminasse, antecipando-se.  Sentiu-se contente ao dizer-lhe que estava tudo bem, que ela própria sonhara com o pai, na noite anterior e este lhe parecera bem e tranquilo… Quanto à tia, pretendia visitá-la, em breve.

Isabel Rupaud — cansada de trabalhar textos dos outros, traduzindo documentos técnicos e jurídicos por mais de 40 anos, meteu-se a escrever tardiamente. Ao mesmo tempo ousada e prudente, acha que o mundo é divertido e os obstáculos e dificuldades constituem desafios. O pé que tem na França, onde morou por quatro anos, inicialmente como estudante de Linguística e depois casada, tem muito peso em sua personalidade.

E.X.EM.P.L.O.S

de contos e poesias…

Coordenado pela nossa editora Lunna Guedes
lunnaguedes@gmail.com

A série E.X.E.M.P.L.O.S surgiu no decorrer de uma conversa arisca, na mesa da cozinha, em meio a mistura de ingredientes — trigo, ovos, leites, fermento e manteiga. Estávamos a considerar as possibilidades para as primeira fornada de livros enquanto eu preparava uma receita de pão…

Era tudo novo e inédito para nós dois… Eu pensava no tipo de papel que iria usar — optamos naquela tarde — pelo reciclado que oferecia uma textura agradável ao tato e no gênero literário: contos e poesias. Marco estava pesquisando os modelos de impressoras disponíveis no mercado brasileiro…

Optei por convidar autores com os quais convivia graças ao blogue — ferramenta usada por mim desde 2002 e que seria braço direito da Scenarium e sua produção…

O título para a primeira série de livros surgiu quando Marco pediu: “me dá um exemplo do que você pretende”. Era o que eu pretendiaa: exemplos de palavras, versos, frases inacabadas, imperfeitas, narrativas singulares.

Feito argila nas mãos, o projeto foi sendo — lentamente — moldado… e meses depois, saiu a primeira fornada de poesias: O lado de dentro, de Mariana Gouveia. Oliveiras Blues, de Akira Yamasaki. Caminhos Tortos, de Manoel Gonçalves, o Manogon e Perfumes & Palavras, de Ingrid Caldas…