Scenarium 8 | Coletivo Nas nuvens

Lua Souza

Planeta eu, Lua

Nirlei Maria Oliveira

Nuvens

Rozana Gastaldi Cominal

Corpos tangíveis

Isabel Rupaud

Altitude

Nas Nuvens | Nuvens…

cavalos-marinhos

sentada na areia da praia olho a imensidão do mar

movimentos e cores entram em minhas retinas

deixo-me embalar pelo fluxo e refluxo das ondas

relaxo e desfaço os pontos de tensão no meu corpo

minha mente divaga e me perco na paisagem

algo flutua acima da linha do horizonte

em meio às nuvens cavalos-marinhos azuis dançam para as sereias

(eu, na areia, contando conchas do mar

e construindo castelos)

Mil Tsurus

desejos florescem nas dobras dos tempos

nos corpos ávidos ou desérticos

centelhas religam cacos em vitrais

e os fragmentos de nós

viver é domar angústias

sustentar com sorrisos o peso

incontornável das dores

felicidade plena são nuvens efêmeras

pequenos tsurus que vejo no céu

(aprendo a dobrar papéis, a coluna e a esquina

sem esperar respostas do tempo)

O gato de Alice

no rosto — o espanto —

silêncio singular

infinito objetos e seres

nas paisagens ilusórias

entre nuvens emerge o gato de Alice 

e seu sorriso enigmático

seguro uma xícara de chá

e anoto mentalmente um poema

— tudo é volátil e ilusório —

me diz o chapeleiro Maluco

 tudo é impermanência, Alice

Nirlei Maria Oliveira… poeta e Bibliotecária com mestrado em Ciência da Informação, reside em Campinas, SP. Autora do livro de poemas Palav(Ar) (2021). Organizadora das coletâneas: Quarentena Poética (2020) e Cotidiano, Poesia, Resistência(2021).
Tem poemas publicados nas revistas: Travessias Literárias, Cult — Lugar de Fala, Literatura e Fechadura, A Palavra No Agora do Museu da Língua Portuguesa, Literatura Brasileira no XXI, Partilhas Poéticas do Museu Ema Klabin, Acrobata, Tamarina Literária, Aboio, Ser MulherArte, Ruído Manifesto, Sucuru, Errancia  (Universidade Nacional Autônoma do México), Desvario, Entreverbo, Revista Toma Aí Um Poema!, Kuruma’tá — Revista De Culturas E Afetos, Caderno Literário Pragmatha.

Nas nuvens | Altitude

Nuvens leves, nuvens pesadas. Brancas, rosa, cinza ou negras. De acordo com o humor do dia. Negras nos fazem esperar tempestades, melhor ficar em casa, ou, se necessário sair, usar de cautela e capas, galochas, guarda-chuvas. Em certas estações, podemos temer catástrofes, principalmente onde os governantes se eximem de suas próprias obrigaçõese o povo não respeita a natureza.

Brancas e leves, como flocos de algodão, enfeitam o céu, povoando a monotonia do azul. Nuvens cor de rosa nos fazem pensar em flores, guloseimas, felicidade. As pesadas mas ainda brancas cobrem o sol, escondem as estrelas e soltam a tristeza. Se muito baixas, ao amanhecer, são as brumas que prenunciam um dia quente e ensolarado. Cumpre entender a linguagem desses seres nebulosos, úmidos, que se transformam em chuvas e regam nossos solos, nossas flores, nossos alimentos, desalteram os animais.

Céu de brigadeiro é aquele céu sem nuvens, sem dificuldades ou obstáculos, ideal para os altos oficiais fazerem de conta que ainda sabem pilotar.  Pobreza… Já estive acima das nuvens, aquele mar de algodão branco sob um sol brilhante. E já penetrei uma enorme tempestade negra. Foi como bater num forte paredão. Imediatamente fui jogada para cima, para baixo, para a direita e para a esquerda. Felizmente chegamos ao chão inteiros e com saúde.

Nuvem é o lugar onde vivo. Apesar de manter os pés no chão, com prudência e ponderação, permito-me sonhar, viver o que desejo, imaginar que o mundo é bom. Por outro lado, estando sempre nas alturas, perco os objetos, me atraso para os compromissos, esqueço o que não deveria, erro nas contas ou nas receitas.

Isabel Rupaud — cansada de trabalhar textos dos outros, traduzindo documentos técnicos e jurídicos por mais de 40 anos, meteu-se a escrever tardiamente. Ao mesmo tempo ousada e prudente, acha que o mundo é divertido e os obstáculos e dificuldades constituem desafios. O pé que tem na França, onde morou por quatro anos, inicialmente como estudante de Linguística e depois casada, tem muito peso em sua personalidade.

Nas nuvens  | Corpos tangíveis

O casal de jovens, antes afoitos, experimentam, agora, inertes, a instabilidade de sensações  e mudanças  que estão por vir. O rapaz quer o chão firme,  enquanto a moça almeja voar por entre as nuvens, vasto mar de espuma  a perder de vista.

— Tá tudo tão anuviado!

— Como assim?

— Parece que vai chover! Tudo cinzento lá em cima.

— Tá nas nuvens isso sim, quando vai ter coragem?

— É sério, vai fechar o tempo.

— Não creio que vai fugir da raia!

—  Vixe, vai desabar o mundo…

— O meu já desabou quando acreditei nas suas promessas…

— Desanuvem, mulher!

— Fogo de palha, nuvem passageira o nosso caso.

— É você quem quer partir.

— Aqui já deu para mim, chega de nuvem de gafanhotos no meu quadrado.

— Não é tão nebuloso assim, dá para controlar os estragos.

— Como se fosse possível o controle das coisas… prefiro caminhar nas nuvens… delas brotam sorrisos, flores, bichos, desafios… ei,  melhor correr, se não quiser se molhar….

Algumas pessoas são nuvens lânguidas que dissipam, enquanto outras são nuvens vorazes que pedem novos ares. A moça vai  no balanço, suspensa no ar, sem temer a imensidão do mar abaixo, enquanto ele prefere atracar no porto seguro e não arriscar. Uns vivem  na bolha insular, na surdina, mantêm o fluxo em terreno palpável.  Já outros, ao ar livre,  afrouxam as amarras  em ressonância carnal e enlevo espiritual. 

Corpos fluidos somos, uns mais, outros menos, vale o pensamento que levita, somos, pois,  nuvens de algodão, de açafrão, de chuva que evapora em prazer ou danação.

Rozana Gastaldi Cominal… Mulher que voa, é feita d-eus múltiplos que sustentam o corpo amoroso, político e periférico. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz. Dos espinhos ao néctar das pétalas aninhadas, nada lhe passa imperceptível. Alada, em voo invisível, colhe palavras e pólen em jardins suspensos de seu quintal ou da Babilônia. Franco-atiradora, arma-se do riso apesar da zanga que espreita.  Também os fins justificam os meios em estado de poesia.

Nas Nuvens  | Planeta eu, Lua

A vida adulta chega e paramos de fazer coisas simples como se deitar na grama e apontar desenhos nas nuvens. Enquanto a maioria dos meus colegas avistavam rostos humanos e bichos, eu enxergava planetas, e isso diz muito sobre mim.

Era tão inusitado ver perfeitamente os anéis de Saturno. Não me conformava como ninguém mais os via. O mais recorrente foi rebaixado a planeta anão, mas até hoje o defendo bravamente: Plutão já foi planeta! Talvez eu tenha tendência a gostar dos excluídos. Dona Isabel, uma senhora curandeira da antiga vila Josefina, dizia que nasceriam verrugas em nossos dedos, de tanto apontarmos para o céu — nunca aconteceu comigo.

O passatempo preferido das amigas inseparáveis: Gwai, Jéssica e eu. Gwai também enxergava coisas inusitadas, como instrumentos musicais. Jéssica nos olhava com cara de desdém como quem pensa: vocês são estranhas. As tardes depois da escola passavam num piscar de olhos, exceto nos dias de céu sem nuvens. Um dia eu li que isso — de procurarmos significado em tudo, até nos desenhos das nuvens, faz parte do que chamamos de evolução humana.

Mas parece ser apenas uma desculpa para essa nossa mania de dar pitaco em tudo. Seja como for, não posso negar que é incrível a nossa capacidade de interpretarmos estímulos imprecisos e aleatórios em algo compreensível. O cérebro humano realmente é fascinante. Voltando aos planetas pelos quais sempre fui apaixonada, tanto que, quando adolescente, logo tratei de pedir um telescópio de presente — nunca o ganhei, mas comprei de presente, com o suor do meu trabalho, no meu aniversário de 19 anos.

Tamanha era a minha empolgação; vida social? Só se fosse no meu quintal, a noite e olhando para o céu. Assistia o jornal para ver se algo de especial aconteceria no céu. Certa vez, presenciei um eclipse solar, além das inúmeras Luas de sangue — Donas da noite. Ainda tenho a esperança de conseguir chegar lá nos confins da terra para conhecer a aurora boreal. Eu tenho uma teoria de que as pessoas são como planetas, corpos celestes que orbitam não apenas uma, mas várias estrelas. Poderia facilmente morar na estratosfera.

Por enquanto vivo aqui na terra e vou me preparando para ser nuvem.

Lua Souza… A autora que vos fala é uma filha de Letras. Gosta do som dançante do encontro entre vogais e consoantes, gosta dos radicais. Gosta de uma cartase, é a própria epifania materializada. Gosta das formas e imagens. Gosta de tomar um porre- de palavras. Também gosta de  observar as pessoas nos trens, parques e escrever sobre elas. Gosta do jeito que a cidade olha para ela. Gosta de sorrisos, aqueles com todos os dentes. Gosta de pequenas coisinhas que a salvam do caos: música é uma delas. Gosta de bandas de rock e poetas modernistas, gosta das referências, gosta que as coisas façam sentindo no mundo dela- da Lua. Gosta do nome Clarice, gosta da Maria Ribeiro e da Viviane Mosé.

Gosta de ser metódica, quase demodê. Gosta do barulho de máquina de escrever. Gosta de rimar.
Gosta da palavra gostar.