Escolhi a varanda após a leitura de um poema que foi enviado por um poeta… um ilustre desconhecido da realidade literária. Ele queria a minha opinião a respeito de suas linhas-primeiras — coisa bastante comum por aqui… O domador de palavras, como se define, teceu um diálogo com o papel que ao ser dobrado converte-se em barquinho de papel.
Lido, o poema não causou impacto algum em minha anatomia… Às vezes, acontece. O verso atravessa a minha epiderme e vai embora, sem deixar rastros. O abandonei na tela — condição de barco a deriva em alto mar — a se afastar dos meus olhos… Com a promessa de retorno… a qualquer momento.
Preparei uma xícara de chá e na condição de marinheiro… me pus a navegar pelos cômodos da casa. Quando dei por mim, estava a repetir o movimento das mãos… dando nova forma ao papel. Dobrando uma-duas-três-quatro vezes, criando vincos com as unhas… Do quadrado inicial para um triângulo maior-menor… E de dobra em dobra, eis que acontece um barquinho…
A primeira vez que pratiquei a dobradura foi em sala de aula — a mais colorida da escola, com obras de arte mirins penduradas em um varal — desenhos feito à lápis e algumas pinturas com guache — que se misturavam a réplicas de grandes artistas.
— Todos somos artistas! — disse a professora, me fazendo bufar ao ter certeza de que naquela turma de vinte e duas criaturas insones, havia apenas arteiros…
A tal sala temática era uma invenção de Eva, a nossa professora de Educação Artística que, acreditava estar perto de encontrar um novo talento para lapidar e apresenta-lo ao mundo — era um sonho convertido em projeto de vida… Com ela, aprendi as cores primárias, secundárias, terciárias e suas respectivas misturas. Fiz um desenho com nanquim e preenchi um caderno inteiro com desenhos horríveis… Não era a minha aula preferida e a professora não me conquistava com suas teorias de espaço, cores, fôrmas e formas. Por razões obvias, eu não era a personagem que ela tanto procurava.
Mas, foi em uma de suas aulas — tínhamos duas por semana — que conhecemos Akemi… uma artista oriental, radicada em nossa cidade. Ela se parecia com um daqueles enfeites de porcelana, no qual esbarramos — descuidados — e quebramos. Por ter curiosidade a respeito da cultura oriental, me interessei. Alguns de seus trabalhos atraíram a minha atenção. Ela desenhava letras orientais em um papel diferente, específico para a sua arte: arroz e os seus traços eram de uma delicadeza impressionante.
Akemi pouco falou a respeito do papel que usava, confeccionado a partir das longas fibras de arroz branco, resistente e de cor branca, quase translúcida e textura áspera para falar a respeito de uma técnica milenar: o origami.
Meu interesse minguou…
Akemi ensinava os segredos do papel e a magia das mãos — explicando o sentido da palavra: origami quer dizer ori (dobrar) kami (papel).
Arte popular oriunda do Japão que consiste em dobrar o papel sem cortar até obter uma forma específica. Mencionou Akira Yoshizawa o criador da idéia da dobragem criativa — Sasaku Origami — e inventor de um conjunto de métodos que permite dobrar uma série de animais e pássaros.
Akemi dobrava o papel com facilidade. Todos os seus movimentos eram delicados e lentos. Ao vê-la, pensei em meu livro, deixado aberto, em cima da minha mesa de meu quarto, de frente para o mundo-mar-cidade e os muitos telhados vermelhos.
Cresci acreditando que poderia saltar muros, escalar telhados e chegar até a parte mais baixa da cidade, inspirada no filme Mary Poppins. Eu vivia resmungando a canção chim-chim-cher-ee por aí…. Por sorte, a criança que eu fui, apenas imaginou essa possibilidade sem nunca tentar tal coisa. Era parte de um sonho-infantil e eu adormeci inúmeras vezes no telhado. Pela manhã, despertava — na cama — em dúvidas entre sonho ou realidade. Passado o susto de não me encontrar na cama e me procurar pela casa inteira… até me localizarem no telhado, mio babo providenciou uma escada de fácil acesso para chegar até lá, ao invés de me proibir de sair pela janela, usando todo o discurso a respeito do perigo que eu corria ao escalar a parede. Era ele quem me devolvida para a cama no meio da madrugada. E foi das mãos dele que recebi uma luneta para explorar distâncias… E não era um modelo qualquer — era uma luneta-pirata…
Regressei de meus delírios — lugar para onde vou com frequência e facilidade — quando a professora colocou um origami em minha mesa. Era um Tsuru — ave sagrada do Japão, símbolo da saúde, felicidade, longevidade e da fortuna, que em terras nipônicas é conhecido como orizuru. É um dos origami mais tradicionais da cultura japonesa.
— Inicialmente — disse Akemi — o tsuru tinha função decorativa. Era usado para enfeitar os quartos das crianças, distraindo-as da realidade, conduzindo-as ao mundo dos sonhos. Mais tarde, foi associado às orações e passou a ser oferecido nos templos, acompanhado de pedidos de proteção. E existe uma lenda muito famosa em meu país que, diz que se dobrarmos mil tsurus, os deuses realizarão o nosso mais profundo desejo.
A Lenda dos Mil Tsurus se tornou conhecida através da história de Sadako Sasaki, uma menina que foi exposta à radiação da bomba atômica, que atingiu a cidade de Hiroshima. Sadako desenvolveu leucemia e passou sua infância sendo tratada no Hospital da Cruz Vermelha, onde conheceu a lenda do Senbazuru e decidiu que iria dobrar os mil tsurus e ter seu desejo realizado. Apesar de sua determinação, a menina faleceu antes de completar sua missão. A história se espalhou ao vento. As crianças da cidade se reuniram e finalizaram a tarefa por Sadako. Virou lenda… E todo ano, assim como florescem as cerejeiras num lindo espetáculo… as árvores da cidade amanhecem coloridas por tsurus feitos pelas crianças que ouvem histórias a respeito da importância de se acreditar nos sonhos.
Depois de zanzar por toda a sala, enquanto tagarelava lendas, com seus passos de gueixa, Akemi parou ao lado da minha mesa… e pousou ali o tsuru por ela confeccionado, avisando-me: toda vez que se ganha um tsuru, devemos retribuir. Eu exibi um sorriso amarelo-pálido-sem-graça e quase inventei uma lenda própria para me livrar da manobra da artista oriental… Dobrei o meu tsuru com toda a dificuldade do mundo. As outras crianças se saíram melhores que eu, em suas tarefas.
Eu era melhor na arte de virar páginas…
Ao final da aula, ganhamos um kit dobradura. Em meu quarto, escolhi o quadrado azul e de dobra em dobra, finalmente aconteceu um barquinho, deixado em cima do livro do momento: 20 mil léguas submarinas, de Jules Verne…
Lunna Guedes... sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecia o outono em qualquer hemisfério e escreve por escrever somente, às vezes na própria pele ou nas paredes do corpo, por dentro… Gosta de caminhar e contar os passos e de ser perder de si e do mundo alheio… às vezes, atende por Catarina!