Nas Nuvens  | De que cor é esse coração alado

Eu sempre fui a menina das nuvens… quando minha mãe me chamava e eu não respondia, ela logo dizia: está com cabeça nas nuvens? Lembro-me da primeira vez que vi um desenho fora das nuances que as nuvens fazem-trazem ao pôr do sol ou ao nascer.

Era um cachorro que corria atrás de um coração.
O coração nuvem ia pulando entre outras nuvens fofas e o cão não alcançava.
Parecia o livro que eu desenhava. 

Mas o vento lá em cima dissipou as nuvens e eu fiquei apenas com a sensação de um pelo fofo na mão.
Quando não tinha mais nada para fazer, deitava-me na grama, para além do curral e ficava a espiar o céu.

Quando cresci, passei a quarar nuvens como meu pai dizia. Os lençóis brancos, de linho, no jirau de madeira pareciam nuvens bailando com o vento. Bastava amanhecer e meus olhos buscavam o céu. Era flecha, em alguns momentos, um anjo, um cupido, um jacaré e cães… ora, buldogue, ora poodle. Sempre fui uma especialista em ver corações nas nuvens. Alados, correndo com o vento… Em viagens, em tardes quase noites, em amanheceres… o pote de algodão se abria e meus olhos buscavam a formação. Às vezes, tão sutil… em outras, tão escancaradas que parecia que alguém, lá de cima, mexia o dedo e o coração se formava.

Tempos depois, quando ouvi Jota Quest cantando sobre: ‘Posso brincarde descobrir desenho em nuvens, posso contar meus pesadelos e até minhas coisas fúteis…’ descobri que eu não era única. Às vezes, os desenhos formam letras como se fossem mensagens cifradas. Em outras, palavras inteiras que me lembram cartas. Já vi pássaros em voos rasantes e potes de ouro entre arco-íris.

Certa vez, em uma das viagens pelo  interior do estado paramos em uma estrada no meio do nada. Achei que estivesse no céu… as nuvens pairavam sobre a estradinha e um coração me seguia, quase ao alcance das mãos. A impressão é que eu estava dentro de um pote de algodão. Minha mão tocava as nuvens quase a um palmo do chão.

Senti como se estivesse ganhando um abraço do céu.

Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias… 

Nas nuvens | Altitude

Nuvens leves, nuvens pesadas. Brancas, rosa, cinza ou negras. De acordo com o humor do dia. Negras nos fazem esperar tempestades, melhor ficar em casa, ou, se necessário sair, usar de cautela e capas, galochas, guarda-chuvas. Em certas estações, podemos temer catástrofes, principalmente onde os governantes se eximem de suas próprias obrigaçõese o povo não respeita a natureza.

Brancas e leves, como flocos de algodão, enfeitam o céu, povoando a monotonia do azul. Nuvens cor de rosa nos fazem pensar em flores, guloseimas, felicidade. As pesadas mas ainda brancas cobrem o sol, escondem as estrelas e soltam a tristeza. Se muito baixas, ao amanhecer, são as brumas que prenunciam um dia quente e ensolarado. Cumpre entender a linguagem desses seres nebulosos, úmidos, que se transformam em chuvas e regam nossos solos, nossas flores, nossos alimentos, desalteram os animais.

Céu de brigadeiro é aquele céu sem nuvens, sem dificuldades ou obstáculos, ideal para os altos oficiais fazerem de conta que ainda sabem pilotar.  Pobreza… Já estive acima das nuvens, aquele mar de algodão branco sob um sol brilhante. E já penetrei uma enorme tempestade negra. Foi como bater num forte paredão. Imediatamente fui jogada para cima, para baixo, para a direita e para a esquerda. Felizmente chegamos ao chão inteiros e com saúde.

Nuvem é o lugar onde vivo. Apesar de manter os pés no chão, com prudência e ponderação, permito-me sonhar, viver o que desejo, imaginar que o mundo é bom. Por outro lado, estando sempre nas alturas, perco os objetos, me atraso para os compromissos, esqueço o que não deveria, erro nas contas ou nas receitas.

Isabel Rupaud — cansada de trabalhar textos dos outros, traduzindo documentos técnicos e jurídicos por mais de 40 anos, meteu-se a escrever tardiamente. Ao mesmo tempo ousada e prudente, acha que o mundo é divertido e os obstáculos e dificuldades constituem desafios. O pé que tem na França, onde morou por quatro anos, inicialmente como estudante de Linguística e depois casada, tem muito peso em sua personalidade.

Nas nuvens  | Corpos tangíveis

O casal de jovens, antes afoitos, experimentam, agora, inertes, a instabilidade de sensações  e mudanças  que estão por vir. O rapaz quer o chão firme,  enquanto a moça almeja voar por entre as nuvens, vasto mar de espuma  a perder de vista.

— Tá tudo tão anuviado!

— Como assim?

— Parece que vai chover! Tudo cinzento lá em cima.

— Tá nas nuvens isso sim, quando vai ter coragem?

— É sério, vai fechar o tempo.

— Não creio que vai fugir da raia!

—  Vixe, vai desabar o mundo…

— O meu já desabou quando acreditei nas suas promessas…

— Desanuvem, mulher!

— Fogo de palha, nuvem passageira o nosso caso.

— É você quem quer partir.

— Aqui já deu para mim, chega de nuvem de gafanhotos no meu quadrado.

— Não é tão nebuloso assim, dá para controlar os estragos.

— Como se fosse possível o controle das coisas… prefiro caminhar nas nuvens… delas brotam sorrisos, flores, bichos, desafios… ei,  melhor correr, se não quiser se molhar….

Algumas pessoas são nuvens lânguidas que dissipam, enquanto outras são nuvens vorazes que pedem novos ares. A moça vai  no balanço, suspensa no ar, sem temer a imensidão do mar abaixo, enquanto ele prefere atracar no porto seguro e não arriscar. Uns vivem  na bolha insular, na surdina, mantêm o fluxo em terreno palpável.  Já outros, ao ar livre,  afrouxam as amarras  em ressonância carnal e enlevo espiritual. 

Corpos fluidos somos, uns mais, outros menos, vale o pensamento que levita, somos, pois,  nuvens de algodão, de açafrão, de chuva que evapora em prazer ou danação.

Rozana Gastaldi Cominal… Mulher que voa, é feita d-eus múltiplos que sustentam o corpo amoroso, político e periférico. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz. Dos espinhos ao néctar das pétalas aninhadas, nada lhe passa imperceptível. Alada, em voo invisível, colhe palavras e pólen em jardins suspensos de seu quintal ou da Babilônia. Franco-atiradora, arma-se do riso apesar da zanga que espreita.  Também os fins justificam os meios em estado de poesia.

Nas Nuvens  | Planeta eu, Lua

A vida adulta chega e paramos de fazer coisas simples como se deitar na grama e apontar desenhos nas nuvens. Enquanto a maioria dos meus colegas avistavam rostos humanos e bichos, eu enxergava planetas, e isso diz muito sobre mim.

Era tão inusitado ver perfeitamente os anéis de Saturno. Não me conformava como ninguém mais os via. O mais recorrente foi rebaixado a planeta anão, mas até hoje o defendo bravamente: Plutão já foi planeta! Talvez eu tenha tendência a gostar dos excluídos. Dona Isabel, uma senhora curandeira da antiga vila Josefina, dizia que nasceriam verrugas em nossos dedos, de tanto apontarmos para o céu — nunca aconteceu comigo.

O passatempo preferido das amigas inseparáveis: Gwai, Jéssica e eu. Gwai também enxergava coisas inusitadas, como instrumentos musicais. Jéssica nos olhava com cara de desdém como quem pensa: vocês são estranhas. As tardes depois da escola passavam num piscar de olhos, exceto nos dias de céu sem nuvens. Um dia eu li que isso — de procurarmos significado em tudo, até nos desenhos das nuvens, faz parte do que chamamos de evolução humana.

Mas parece ser apenas uma desculpa para essa nossa mania de dar pitaco em tudo. Seja como for, não posso negar que é incrível a nossa capacidade de interpretarmos estímulos imprecisos e aleatórios em algo compreensível. O cérebro humano realmente é fascinante. Voltando aos planetas pelos quais sempre fui apaixonada, tanto que, quando adolescente, logo tratei de pedir um telescópio de presente — nunca o ganhei, mas comprei de presente, com o suor do meu trabalho, no meu aniversário de 19 anos.

Tamanha era a minha empolgação; vida social? Só se fosse no meu quintal, a noite e olhando para o céu. Assistia o jornal para ver se algo de especial aconteceria no céu. Certa vez, presenciei um eclipse solar, além das inúmeras Luas de sangue — Donas da noite. Ainda tenho a esperança de conseguir chegar lá nos confins da terra para conhecer a aurora boreal. Eu tenho uma teoria de que as pessoas são como planetas, corpos celestes que orbitam não apenas uma, mas várias estrelas. Poderia facilmente morar na estratosfera.

Por enquanto vivo aqui na terra e vou me preparando para ser nuvem.

Lua Souza… A autora que vos fala é uma filha de Letras. Gosta do som dançante do encontro entre vogais e consoantes, gosta dos radicais. Gosta de uma cartase, é a própria epifania materializada. Gosta das formas e imagens. Gosta de tomar um porre- de palavras. Também gosta de  observar as pessoas nos trens, parques e escrever sobre elas. Gosta do jeito que a cidade olha para ela. Gosta de sorrisos, aqueles com todos os dentes. Gosta de pequenas coisinhas que a salvam do caos: música é uma delas. Gosta de bandas de rock e poetas modernistas, gosta das referências, gosta que as coisas façam sentindo no mundo dela- da Lua. Gosta do nome Clarice, gosta da Maria Ribeiro e da Viviane Mosé.

Gosta de ser metódica, quase demodê. Gosta do barulho de máquina de escrever. Gosta de rimar.
Gosta da palavra gostar.

Barquinho de Papel | Barquinho

Quando se é criança,
a mente confabula histórias sem fim por lugares,
brinquedos e seres imaginários.


No faz de conta nada é absurdo.
As velas içadas da memória levam
o barquinho de papel por terras gélidas.


Eu e ele, cientistas em expedição pelo Lago Ness.
De suas profundezas emerge o monstro marinho.
No espelho d’água: carcaças à deriva ou descoberta, enfim, comprovada?

O final trágico ou não é mero detalhe.
Somos unha e carne. Temos rins que enfrentam
perigos titânicos… a vida é frágil.

Quando se é criança,
a invencibilidade toma conta da fantasia.
Viagens fantásticas em barcos de papel na bacia
no quintal enquanto a febre não baixa.

Ele, o pescador que enfrenta tempestade em alto mar.
Eu, a pequena sereia, canto para enfeitiçar. 
Apaixonados, vivemos felizes para sempre.

No cardápio da infância, falar abobrinhas é batata!
Os devaneios nos alimentam.
Somos unha e carne.
Temos um fígado insólito que regenera…
a vida é frágil.

Quando se é criança,
as coisas parecem ter uma dimensão descomunal.
Ele é um verdadeiro camaleão.
Sou um peixinho com vontade de voar.


Pegamos carona no barquinho de papel a deslizar, primeiro, pelas águas sem se enxarcar.
O rio celebra. Depois o barquinho ganha asas, apesar do tempo turbulento.


O céu abrilhanta.
A luz tem cheiro.
Manteiga derretida.
Um dilúvio se anuvia.
Somos unha e carne.
Temos um cérebro ciclópico… a vida é frágil.

Quando se é criança,
a fragilidade da vida é desmedida.
Ninguém se preocupa se o barquinho de papel
foi desfeito em segundos.


A imaginação corre solta ao sabor do vento e da correnteza.
O som tem cor.
Mamão com açúcar.


Nova dobradura é feita, agora com o amuleto da sorte.
Eu sou uma verdadeira marinheira, olhar atento, no barquinho que vai pelo fluxo da água.


Ele é um gigante, à frente,
mesmo cuidando dos obstáculos,
percebe o naufrágio.


Nem assim as lágrimas afogam nossos sonhos.
Somos unha e carne.
Temos um pulmão caleidoscópico… a vida é frágil.


Quando se é criança, a sensibilidade aflora de forma gigantesca.
O barquinho de papel agora é Nautilus,
mergulhamos a vinte mil léguas submarinas.

O sonar sonda os tesouros perdidos.
Ruma aos palácios colossais e jardins suspensos monumentais.
Estamos no fundo do mar.
Somos rei e rainha de Atlântida.
Mau presságio à vista? 
Deuses invejosos nos enterram no escuro abissal.


Somos unha e carne, então cavamos.
Temos um coração atlântico.
Seja ficção ou real, a vida é frágil invenção.

Rozana Gastaldi Cominal… Mulher que voa, é feita d-eus múltiplos que sustentam o corpo amoroso, político e periférico. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz. Dos espinhos ao néctar das pétalas aninhadas, nada lhe passa imperceptível. Alada, em voo invisível, colhe palavras e pólen em jardins suspensos de seu quintal ou da Babilônia. Franco-atiradora, arma-se do riso apesar da zanga que espreita.  Também os fins justificam os meios em estado de poesia.

Barquinho de papel  | Barquinhos…

Lembro-me do barulho dos meus pés pisando a areia fina que contornava o rio à poucos passos da casa e durante a noite.

Quando tudo se aquietava eu ficava ouvindo o barulho da água dançando com as margens. Era a hora que eu sonhava com o barco que me levaria até o mar? Em minha cabeça de menina uma pergunta martelava: será que se eu seguir esse rio, percorrendo as curvas eu chegaria até o mar? Parecendo adivinhar meus pensamentos, minha mãe me mandou sentar ao redor da mesa grande debaixo do pé de sete copas… revistas velhas, tesoura e foi dobrando uma folha de revista.

A ponta de cima até o centro do papel.
A ponta de baixo levantada.

Suas mãos foram dobrando aqui, forçando a dobra ali e no centro da mesa um barquinho pousou… A companhia dos meus irmãos encheu a mesa… e eu quis colocar meu barco no rio, para testar, colocando nele a esperança e a fantasia de sair vida afora até conhecer o mar. Mas, assim que o barquinho foi colocado no rio, a correnteza o carregou e poucos metros abaixo se desfez lentamente. Um outro, foi um pouco mais longe e sumiu debaixo da água. Mas um, feito com outro tipo de papel — mais duro — seguiu a curva e sumiu levado pela correnteza. Do alto de uma pedra consegui avistá-lo  até onde meus olhos conseguiram ver.

Minha mãe, vendo as nossas expectativas ali, com alguns barquinhos ainda em mãos, disse que os sonhos eram iguais aos barquinhos. Uns, eram muito frágeis e no primeiro obstáculo se desmanchavam. Outros, duravam algum tempo, mas diante de algumas dificuldades, eram desfeitos — talvez para dar lugar a outros sonhos — e só o sonho baseado em um sentimento forte, seria realizado. Não importa o tempo, nem as dificuldades… de uma forma ou de outra, o barco encontra um porto seguro onde atracar. Eu ainda não conheci o mar. E o meu barco de papel que estava guardado, se perdeu nas mudanças da vida.

Quando o meu filho completou 11 anos… o ensinei a dobrar o papel para confeccionar o seu barquinho de papel. Repeti as mesmas frases que minha mãe me disse. Falei dos sonhos, da importância de tê-los e das dificuldades que poderiam surgir quando buscamos esse sonho. O tempo passou, e um dia, seguindo o seu sonho, meu filho me ligou à beira do mar. Ouvi o barulho das ondas, o som do vento e o eco dos passos dele na areia… sua voz sendo parte do mar que toda vida sonhei ouvir:

— Mãe, o barquinho enfrentou a onda e está lá, no meio do mar. Os sonhos se realizam, mãe.

Não era eu ali, mas eu compreendi o que minha mãe quis dizer: muitas vezes, os nossos sonhos se realizam nos nossos filhos.

Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias… 

Barquinho de Papel | Origami

Escolhi a varanda após a leitura de um poema que foi enviado por um poeta… um ilustre desconhecido da realidade literária. Ele queria a minha opinião a respeito de suas linhas-primeiras — coisa bastante comum por aqui… O domador de palavras, como se define, teceu um diálogo com o papel que ao ser dobrado converte-se em barquinho de papel. 

Lido, o poema não causou impacto algum em minha anatomia… Às vezes, acontece. O verso atravessa a minha epiderme e vai embora, sem deixar rastros. O abandonei na tela — condição de barco a deriva em alto mar — a se afastar dos meus olhos… Com a promessa de retorno… a qualquer momento.

Preparei uma xícara de chá e na condição de marinheiro… me pus a navegar pelos cômodos da casa.  Quando dei por mim, estava a repetir o movimento das mãos… dando nova forma ao papel. Dobrando uma-duas-três-quatro vezes, criando vincos com as unhas… Do quadrado inicial para um triângulo maior-menor… E de dobra em dobra, eis que acontece um barquinho…

A primeira vez que pratiquei a dobradura foi em sala de aula — a mais colorida da escola, com obras de arte mirins penduradas em um varal — desenhos feito à lápis e algumas pinturas com guache — que se misturavam a réplicas de grandes artistas.

— Todos somos artistas! — disse a professora, me fazendo bufar ao ter certeza de que naquela turma de vinte e duas criaturas insones, havia apenas arteiros… 

A tal sala temática era uma invenção de Eva, a nossa professora de Educação Artística que, acreditava estar  perto de encontrar um novo talento para lapidar e apresenta-lo ao mundo — era um sonho convertido em projeto de vida… Com ela, aprendi as cores primárias, secundárias, terciárias e suas respectivas misturas. Fiz um desenho com nanquim e preenchi um caderno inteiro com desenhos horríveis… Não era a minha aula preferida e a professora não me conquistava com suas teorias de espaço, cores, fôrmas e formas. Por razões obvias, eu não era a personagem que ela tanto procurava.


Mas, foi em uma de suas aulas — tínhamos duas por semana — que conhecemos Akemi… uma artista oriental,  radicada em nossa cidade. Ela se parecia com um daqueles enfeites de porcelana, no qual esbarramos — descuidados — e quebramos. Por ter curiosidade a respeito da cultura oriental, me interessei. Alguns de seus trabalhos atraíram a minha atenção. Ela desenhava letras orientais em um papel diferente, específico para a sua arte: arroz e os seus traços eram de uma delicadeza impressionante.

Akemi pouco falou a respeito do papel que usava, confeccionado a partir das longas fibras de arroz branco, resistente e de cor branca, quase translúcida e textura áspera para falar a respeito de uma técnica milenar: o origami. 

Meu interesse minguou…
Akemi ensinava os segredos do papel e a magia das mãos — explicando o sentido da palavra: origami quer dizer ori (dobrar) kami (papel).

Arte popular oriunda do Japão que consiste em dobrar o papel sem cortar até obter uma forma específica. Mencionou Akira Yoshizawa o criador da idéia da dobragem criativa — Sasaku Origami — e inventor de um conjunto de métodos que permite  dobrar uma série de animais e pássaros.

Akemi dobrava o papel com facilidade. Todos os seus movimentos eram delicados e lentos. Ao vê-la, pensei em meu livro, deixado aberto, em cima da minha mesa de meu quarto, de frente para o mundo-mar-cidade e os muitos telhados vermelhos.

Cresci acreditando que poderia saltar muros, escalar telhados e chegar até a parte mais baixa da cidade, inspirada no filme Mary Poppins. Eu vivia resmungando a canção chim-chim-cher-ee por aí…. Por sorte, a criança que eu fui, apenas imaginou essa possibilidade sem nunca tentar tal coisa. Era parte de um sonho-infantil e eu adormeci inúmeras vezes no telhado. Pela manhã, despertava — na cama — em dúvidas entre sonho ou realidade. Passado o susto de não me encontrar na cama e me procurar pela casa inteira… até me localizarem no telhado, mio babo providenciou uma escada de fácil acesso para chegar até lá, ao invés de me proibir de sair pela janela, usando todo o discurso a respeito do perigo que eu corria ao escalar a parede. Era ele quem me devolvida para a cama no meio da madrugada. E foi das mãos dele que recebi uma luneta para explorar distâncias… E não era um modelo qualquer — era uma luneta-pirata…

Regressei de meus delírios — lugar para onde vou com frequência e facilidade — quando a professora colocou um origami em minha mesa. Era um Tsuru — ave sagrada do Japão, símbolo da saúde, felicidade, longevidade e da fortuna, que em terras nipônicas é conhecido como orizuru. É um dos origami mais tradicionais da cultura japonesa.

— Inicialmente — disse Akemi — o tsuru tinha função decorativa. Era usado para enfeitar os quartos das crianças, distraindo-as da realidade, conduzindo-as ao mundo dos sonhos. Mais tarde, foi associado às orações e passou a ser oferecido nos templos, acompanhado de pedidos de proteção. E existe uma lenda muito famosa em meu país que, diz que se dobrarmos mil tsurus, os deuses realizarão o nosso mais profundo desejo.

A Lenda dos Mil Tsurus se tornou conhecida através da história de Sadako Sasaki, uma menina que foi exposta à radiação da bomba atômica, que atingiu a cidade de Hiroshima. Sadako desenvolveu leucemia e passou sua infância sendo tratada no Hospital da Cruz Vermelha, onde conheceu a lenda do Senbazuru e decidiu que iria dobrar os mil tsurus e ter seu desejo realizado. Apesar de sua determinação, a menina faleceu antes de completar sua missão. A história se espalhou ao vento. As crianças da cidade se reuniram e finalizaram a tarefa por Sadako. Virou lenda… E todo ano, assim como florescem as cerejeiras num lindo espetáculo… as árvores da cidade amanhecem coloridas por tsurus feitos pelas crianças que ouvem histórias a respeito da importância de se acreditar nos sonhos.

Depois de zanzar por toda a sala, enquanto tagarelava lendas, com seus passos de gueixa, Akemi parou ao lado da minha mesa… e pousou ali o tsuru por ela confeccionado, avisando-me: toda vez que se ganha um tsuru, devemos retribuir. Eu exibi um sorriso amarelo-pálido-sem-graça e quase inventei uma lenda própria para me livrar da manobra da artista oriental… Dobrei o meu tsuru com toda a dificuldade do mundo. As outras crianças se saíram melhores que eu, em suas tarefas.

Eu era melhor na arte de virar páginas…

Ao final da aula, ganhamos um kit dobradura. Em meu quarto, escolhi o quadrado azul e de dobra em dobra, finalmente aconteceu um barquinho, deixado em cima do livro do momento: 20 mil léguas submarinas, de Jules Verne…

Lunna Guedes... sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecia o outono em qualquer hemisfério e escreve por escrever somente, às vezes na própria pele ou nas paredes do corpo, por dentro… Gosta de caminhar e contar os passos e de ser perder de si e do mundo alheio… às vezes, atende por Catarina!

Barquinho de Papel  | Barquinhos de Papel

Barquinhos de papel são tão simbólicos, toda prô do jardim de infância já passou essa atividade como dever de casa: dobradura de barquinho de papel. Eu quase consigo me lembrar de uma musiquinha do barquinho ligeiro ou barquinho azul. O mais legal era ter que chupar um picolé para usar o palito — porque meu barco tinha que ter as velas.

Pensando em todo sentimento que essa dobradura nostálgica me traz, acho que devo falar das aventuras vividas por mim, por Maria Valentins — minha avó paterna e Dezinho, avô paterno.

Há dois tipos de pessoas no mundo — Maria dizia: as sonhadoras e as chatas.

Tenho para mim que cresci com isso, afinal eu escolhi não ser chata! Essa fala sempre me soou tão reconfortante. Meus pais saiam para trabalhar e eu ficava com eles, meus primos também, mas como neta mais nova e favorita, tínhamos mais contato. Essa continua sendo minha interpretação.

Eu comprava cigarros para vó escondido na vendinha do Ciço e como recompensa ficava com o troco, sim, porque sempre tinha. Eu só não sei como ela fumava igual a uma caipora e escondido do meu vô, mas aquilo não era problema meu — ao menos até antes de sua partida antecipada. Câncer de pulmão.

Eu, sinceramente não sentia culpa mas, também não entendia direito o porquê de, num piscar de olhos, estar na casa da minha madrinha, com todos os meus primos. Uma correria e cochichos dos adultos; ao menos nos davam comida.

E de repente estávamos na capela Santa Luzia, era Maria ali naquela caixa. Demorou para eu assimilar aquela cena ou chorar. Não havia qualquer tipo de diálogo da parte de minha mãe ou meu pai. Talvez essa seja uma questão a se trabalhar na terapia… é a primeira vez que falo disso.

Penso que os anos 90 foi um delírio coletivo — nunca na vestimenta — mas nos valores. De qualquer forma, ter sido criança nessa época foi muito divertido.

Então tudo ficou estranho, não tinha mais as competições de barquinho de papel no tanque de concreto, vô Dezinho passou a usar uma máscara feia, ranzinza no rosto. Não o reconhecia. Um dia entrei escondida em sua casa e me deparei com toda sua coleção de botões no lixo, não dava para acreditar. A verdade é que eu fui vendo meu avô definhando dia após dia, não sei se por amor ou remorso. Talvez os dois.

Fui forçada a arrumar outros hobbies, comecei a escrever e só aquilo me importava, tanto que minhas coleções de cartões telefônicos e papéis de carta ficaram de lado. Não que seja tão relevante, se bem que estou me contradizendo, comecei a ler sozinha aos 6 anos de idade, sempre fui muito curiosa.

Nunca vou esquecer a emoção: F/I/CH/A numa lista telefônica. Aos 8 anos eu lia Shakespeare e treinava meu próprio monólogo. Poderia listar agora todos os meus feitos de criança prodígio — que hoje luta para acreditar ser uma escritora, boa.

Acredite em mim quando digo que minhas aventuras com barquinhos de papel foram totalmente relevantes para o ser humano que sou hoje.

Não havia galochas ou capa de chuva, nem um córrego que dava num bueiro sinistro. Vô Dezinho faleceu há alguns anos, ele repetia todos os dias: amanhã é minha vez.

Penso que tamanha era sua vontade do reencontro, que durou tanto tempo para tal. Sua casa está fechada, sobraram poucas coisas daquela época. O tanque de concreto permanece intacto, embaixo dele a bacia que usávamos para as competições.

O barquinho nunca afundou nas minhas memórias.

Lua Souza… A autora que vos fala é uma filha de Letras. Gosta do som dançante do encontro entre vogais e consoantes, gosta dos radicais. Gosta de uma cartase, é a própria epifania materializada. Gosta das formas e imagens. Gosta de tomar um porre- de palavras. Também gosta de  observar as pessoas nos trens, parques e escrever sobre elas. Gosta do jeito que a cidade olha para ela. Gosta de sorrisos, aqueles com todos os dentes. Gosta de pequenas coisinhas que a salvam do caos: música é uma delas. Gosta de bandas de rock e poetas modernistas, gosta das referências, gosta que as coisas façam sentindo no mundo dela- da Lua. Gosta do nome Clarice, gosta da Maria Ribeiro e da Viviane Mosé.

Gosta de ser metódica, quase demodê. Gosta do barulho de máquina de escrever. Gosta de rimar.
Gosta da palavra gostar.

Nas nuvens | Altitude

Fizemos um porta-retrato de papel verde, um chapéu de dois bicos, um barquinho.

Os alunos levaram sua produção para casa. Muitos experimentaram o desempenho em uma bacia com água, no dia seguinte estavam empolgados!

Não me foi permitido o teste. Em casa era proibido brincar com água. Mexer n’água era uma arte severamente punida. O risco era de se molhar e, nesse caso, pegarmos uma gripe. Desgraça muito temida!

Lembrei-me disso quando, estudante, visitei um jardim público na capital francesa, o do Luxemburgo, em frente ao prédio do Senado. Em meio às árvores, gramados, canteiros de flores, chafarizes e esculturas, havia um belo laguinho octogonal. Lá — manda a tradição —, desde a primavera, quando o tempo permite, as crianças soltam barquinhos a vela, que esperam chegar do outro lado. Cada vez que vejo a cena, meu coração bate mais forte. Ainda habita em mim uma criança travessa, que deseja tudo experimentar. Já consegui empinar papagaio, uma atividade que não era coisa de menina. Curioso, carrinhos e aeromodelismo nunca me interessaram.

Mas, com muita certeza, eu hei de conseguir um barquinho para soltá-lo no laguinho do Luxemburgo!

Isabel Rupaud — cansada de trabalhar textos dos outros, traduzindo documentos técnicos e jurídicos por mais de 40 anos, meteu-se a escrever tardiamente. Ao mesmo tempo ousada e prudente, acha que o mundo é divertido e os obstáculos e dificuldades constituem desafios. O pé que tem na França, onde morou por quatro anos, inicialmente como estudante de Linguística e depois casada, tem muito peso em sua personalidade.

Barquinho de Papel  | Marcha Soldado

Alheios à problemática da escassez de água, mudanças climáticas, assalto ao Aquífero Guarani, em criança, detestávamos a chuva que desabava em nossos feriados adiando brincadeiras ao ar livre.

Com desenhos do sol na lajota, danças indígenas para afastar o mau tempo, e demais simpatias torcíamos pela volta do céu azul, enquanto, da janela, víamos gotas pesadas descumprirem nosso trato, com quem quer que fosse o responsável por deixar a torneira aberta.

Num dia especialmente frio e chuvoso de julho minha mãe apareceu com papéis, canetinhas e a notícia: vamos fazer barquinhos de papel!

Dos retângulos nasceram o chapéu do soldado, com marchinha “cabeça de papel“ e dança pela sala; deles, o primeiro, o segundo, toda nossa frota, pronta para ser customizada com estrelas e coraçõezinhos, além de tripulantes palitinhos prontos para serem lançados ao mar.

Saímos à rua: com botas plásticas, capa e gritinhos, rumo ao caudaloso fluxo que contornava a calçada. A luta dos nossos barquinhos era para cruzar o Cabo Horn sem sucumbir às ondas e ilhotas de sujeira que bloqueavam sua jornada.

A chuva hoje cai; trazendo ora alívio, ora tormento com inundações e desmoronamentos. Nosso esforço diário é para ver, além da sarjeta, barquinhos coloridos rumando ao infinito… nossa felicidade também colaborando para o entupimento das bocas de lobo.

Adriana Aneli…