Iolanda era uma exímia dona de Casa e excelente cozinheira. Não havia uma única festa de aniversário na cidade em que morava desde o nascimento… sem o seu famoso bolo de fitas, em camadas.
Tudo era segredo na cozinha de Ioiô que não revelava nada a ninguém e fazia tudo sozinha, acumulando responsabilidades. A sua barraca de doces era a mais visitada na quermesse da Igreja, durante as festas da Padroeira, para desconforto do Padre que considerava tudo que aquela mulher fazia um pecado. Os seus quitutes eram disputados nas festas da Escola Municipal, onde estudou — apenas o suficiente para ser esposa e mãe.
Iolanda foi escolhida — aos dezesseis anos — por Darci, durante a missa de domingo… Era uma moça bonita e estava na idade certa. Tinha um belo rosto. Mas foram os belos joelhos que atraíram o olhar do rapaz, que cursava administração na cidade vizinha. O pedido foi feito pelo pai do moço e aceito pelo pai da moça. Casaram-se no ano seguinte.
O pai entregou a noiva com satisfação, transferindo a responsabilidade para o noivo. Presenteou o jovem casal com uma de suas casas — iguais — na famosa Avenida da Saudade, que era o endereço do único cemitério da cidade e virou motivo de piada entre os amigos do noivo. O casamento deu novo status a Darci, que ganhou a confiança do dono da principal fábrica da cidade. Muito responsável, passou a gerenciar o lugar, para inveja de alguns. O primeiro filho — varão — veio ao mundo dois anos depois. Dois anos depois… veio o segundo. Darci não escondeu a decepção… Queria uma menina. Considerou, no entanto, que na próxima tentativa… teria a sua menininha. Não aconteceu. Ao observar os casais de amigos com seus muitos filhos, Iolanda decidiu que estava satisfeita com seu casal de meninos. Havia aprendido com as mulheres de sua família que, quando a mulher não quer, os filhos não vêm.
Iolanda era mulher sensitiva, sempre dizia suas rezas e tinha os seus cuidados. Escolhia ervas no quintal para dores, quebrantos. Fazia seus patuás… tudo às escondidas, porque o marido — católico fervoroso — não admitia benzeduras e não tolerava simpatias. Mas, ao sair de casa, benzia-se… e ao voltar, repetia o ritual do sinal da cruz no peito, pedindo bênçãos ao pai, o seu Criador. De passagem pela porta, saudava a imagem da santa e agradecia por tudo que tinha. Acendia uma vela às segundas e às seis horas em ponto, parava tudo que estivesse fazendo para rezar a ave Maria. Confessava os seus pecados — semanalmente — ao Santo Padre, de quem recebia a hóstia sagrada. O homem se sentia um verdadeiro filho de Deus aos domingos.
Iolanda não via diferença alguma naqueles rituais cristãos dos que havia aprendido com sua avó, na infância.
O marido obedecia — sem titubear — quando a mulher pedia para evitar o traçado percorrido de casa — onde moravam — até a fábrica, ao sair. Na única vez que deu de ombros aos avisos da esposa, complicou-se… para nunca mais.
— Querido, passe na farmácia do seu Nelson, na ida. Preciso da pomada e na volta do trabalho, estará cansado. Poderá não se lembrar.
— Tem razão, querida…
Era tudo que precisava para ter paz e a certeza de que nada lhe aconteceria. O filho mais velho não ousava desobedecer aos conselhos da mãe e era o autor do mantra repetido na família:
“se dona Ioiô avisar, melhor não ignorar”
Ioiô era conhecida por sua sensibilidade e, toda vez que sentia arrepios, quem estivesse por perto… se benzia. O padre se incomodava, mas se aproximava para saber se estava tudo bem. Nesse dia, não estava. Iolanda abandonou os preparativos para os festejos de Cosme e Damião, sem dizer palavras, pegou as suas coisas e saiu correndo.
Chegou em casa junto com a notícia…
O marido havia sofrido um infarto.
O padre aproveitou o discurso de despedida para culpar Iolanda. Disse ser uma punição de Deus e fez questão de relembrar os alertas que fazia quanto ao perigo das rezas proibidas, dos ingredientes secretos e das suas feitiçarias. Ela ouviu tudo quieta, ao lado dos filhos, que seguravam as suas mãos, um de cada lado… Odiaram as palavras do padre, mas não reagiram em respeito à mãe.
— Esse aí pensa que é Deus. — murmurou o mais velho.
— Para mim parece o diabo. — respondeu o caçula num tom quase inaudível.
Durante o cortejo pelas ruas do cemitério até o túmulo, os meninos perceberam as conversinhas de ouvido. E depois do enterro, viram as pessoas se afastarem de Ioiô, que passou a ser mal falada na cidade.
— Cabeças erguidas, meus meninos. É assim mesmo, agora a mãe de vocês é uma triste e pobre viúva. Uma mulher sem marido não tem valor, tampouco direito à vida. O certo seria morrer com o marido.
— Não, mamãe. — Resmungou o caçula, grudando no corpo da mãe.
— É o que pensa essa gente, meu querido, mas eu estou aqui e vou cuidar de vocês. Não se preocupem que Ioiô ainda vai viver muito.
Iolanda cumpriu seu luto…
A casa foi desbotando com ela.
As flores do jardim secaram.
A tinta descascou…
E as lendas se multiplicaram ao seu redor… Com o passar dos dias!
Reclusa, dependia dos seus meninos, que cuidavam dos afazeres nas ruas. O mais velho foi para a faculdade e o caçula seguia enfrentando os desaforos no colégio…. Como era bom de briga, escapava com agilidade dos socos e acertava a cara dos rivais — como se fosse um dardo lançado contra o alvo. Com medo da lenda que corria pela cidade — a respeito da mãe do menino —, o Diretor nada fazia, apenas o repreendia, com tom de voz grave e com o dedo em riste… numa visível tentativa de intimidar o garoto:
— Que isso não se repita!
Iolanda se cansou do comportamento dos moradores de sua cidade ao receber um bilhete do Diretor, que repreendia o seu filho pelo comportamento e pedia que melhorasse a educação do menino. Furiosa, foi espiar a vizinhança através das cortinas de seu quarto e, ao reparar no padre em conversas com seu rebanho… decidiu agir. Acordou mais cedo no dia seguinte e fez todos os afazeres da casa… serviu o café da manhã para os filhos e esperou até irem para a escola.
Escolheu um disco de tango — o favorito de sua avó — e colocou para girar na vitrola. O som se espalhou por todos os cômodos. Preparou uma xícara de chá de ervas e foi se sentar à mesa da cozinha. Reagia como se tivesse emprestado o corpo para o espírito da mulher de quem herdou o nome… Embaralhou as cartas com calma, organizando os pensamentos e as espalhou — uma por uma — por cima da mesa. Ao virar a primeira carta… gargalhou tão alto, que foi ouvida por toda a vizinhança, que se benzeu pedindo proteção aos céus.
Iolanda abriu uma das gavetas do armário, pegou o velho caderninho onde anotava a lista de coisas que precisava comprar e escreveu um bilhete que o caçula foi entregar nas mãos de dona Filomena, conhecida por acomodar o corpanzil na janela, assim que o marido saía para o trabalho.
Ela acendia o cigarro e pronto…
Ficava sabendo de tudo que se passava na vizinhança.
E o que não descobria… inventava.
O padre a repreendia pelo comportamento — durante as confissões — mas só depois que bebia de sua inesgotável fonte.
E Filomena se sentia perdoada…
Após rezar seus paisnossos muitos e avemarias tantas.
Quando não estava de bom humor ou a fofoca não era das melhores, o padre a mandava rezar o terço inteiro.
E o tal bilhete de Iolanda provocou enorme alvoroço em Filomena, que pensou em não ler. O deixou em cima da mesinha da sala, entre os sofás e a televisão. Passava por ali a caminho da janela, mas como nada acontecia naquela manhã, só conseguia pensar no que dizia o tal pedaço de papel muito bem dobrado. Tentou evitá-lo, mas não conseguiu. Sentou-se no sofá, desdobrou o papel e leu as malditas palavras escritas com caligrafia fina:
Amiga Filomena,
Venha à minha casa, assim que possível e, por favor, seja discreta, preciso lhe falar. Assunto de seu interesse…
Ioiô.
— E desde quando eu sou amiga de bruxa? Desgraçada. Não vou. Ela deve estar querendo o meu mal. Minha Nossa Senhora das almas sem sossego, me valha.
Filomena fez o papel em pedaços, jogou na privada e deu descarga, cuspindo seu horror três vezes. Arrumou as camas, varreu a casa, lavou a roupa e as pendurou no varal. Preparou o almoço e quase queimou o arroz tamanho o desassossego que crescia em seu íntimo. Preocupada, mal conseguiu fazer a refeição. Disse ao marido que estava um pouco indisposta por causa do calor e avisou que iria se deitar um pouco. Depois que ele saiu, livrou-se dos filhos e arrumou-se, decidida a ir à casa de Iolanda. Compreendeu, ao empurrar o portão daquela casa — amaldiçoada por Deus — o motivo de seu Darci benzer-se ao entrar ou sair. Fez o mesmo — três vezes — para evitar o pior. Estava pronta para bater na porta, quando Iolanda — em trajes ciganos — a recebeu com um enorme sorriso de boas-vindas.
Filomena ficou impressionada…
Havia anos que não colocava os olhos naquela mulher, que não havia envelhecido um único dia. Só pode ser coisa do diabo — pensou… Ela deve ter feito um pacto com ele e o preço foi a alma do marido. Pobre homem. — concluiu, aceitando o convite para entrar. Observou que a casa cheirava a chá e bolo — o que a fez se lembrar das festas de aniversário da cidade. O bolo feito por Ioiô era personagem principal e como era gostoso. Filomena era a primeira da fila para pegar um generoso pedaço e levar para casa. Reparou de passagem que tudo estava muito bem cuidado. Da mobília lustrada ao piso encerado, contrariando o que se dizia na cidade. Não havia nada quebrado ou coisas estranhas pelas paredes. Era uma casa igual às outras.
Boquiaberta, seguiu Iolanda pelo corredor, repleto de fotos da família… alguns ela reconheceu, outros não. Mas sabia da origem de Iolanda — bisneta de espanhóis. Os rumores diziam que era uma família cigana, que vagava pelo mundo antes de chegar à cidade. Nada nas fotografias apontavam para isso. As pessoas em preto e branco pareciam meros camponeses. A mesa no quintal dos fundos estava posta… toalha vermelha e uma bandeja com bule e xícaras.
— Sente-se… aceita um chá de cidreira? Colhi há pouco e faz bem para os nervos. Ajuda a se acalmar…
— Eu vou aceitar. Obrigada. — era tudo que precisava naquele momento: se acalmar — Iolanda, por que me chamou aqui? Fiquei preocupada… Aconteceu alguma coisa.
— Não fui eu quem a chamou, querida amiga. Foram as cartas…
Filomena inquietou-se na cadeira com a resposta. Não entendia nada de cartas, mas tinha ouvido falar a respeito. Uma das amigas tinha ido a uma cartomante na cidade vizinha. Depois de servir o chá e uma generosa fatia de bolo… puxou o baralho — Filomena nem viu de onde — e espalhou três cartas por cima da mesa.
— Veja! É exatamente a mesma resposta…
Filomena olhou bem de perto. E desejou se benzer mais três vezes. Talvez seis. Mas não o fez. Estava com muito medo de Iolanda… Que parecia ter movimentos típicos de uma naja.
— As notícias não são boas…
— Minha nossa senhora das pessoas aflitas, me ampare com o seu poderoso manto. — Murmurou, quase desfalecendo.
Por sorte, estava sentada ou teria ido ao chão.
— Você foi ao médico recentemente, querida amiga.
— Sim, eu fui, — respondeu aflita — fui fazer alguns exames, coisas de rotina. Nada grave.
Filomena ficou incomodada, não tinha contado a ninguém — apenas ao marido. Estava sentindo calores… o corpo parecia estar em chamas e, às vezes, era muito difícil respirar. Sabia que era coisa da idade e por isso decidiu ir ao médico.
— O que está vendo?
— Eu sinto muito, minha amiga…
— O que é? Eu vou morrer? É isso? Diga de uma vez. — desesperou-se.
— Muito pior, minha amiga. Mas você pode evitar…
— Como? O que tenho que fazer? Diga, minha amiga, por favor. Faço o que for preciso.
— Eu vou lhe ajudar, não se preocupe. Direi tudo o que terá de fazer para quebrar o mal que lhe enviaram…
Filomena apertou bem os olhos… Enumerou nomes em sua mente. A lista de desafetos era grande… Mas um único nome se destacava. E ela sabia que aquela criatura seria capaz de lhe desejar a morte ou coisa pior.
— Eu farei tudo que disser, minha querida.
Filomena havia perdido o medo. Segurava nas mãos de Ioiô com todo o seu fervor, como costumava fazer com o Padre… aquele Santo homem. E, ao sair da casa de Ioiô, correu até a Igreja — alvoroçada com tudo que tinha escutado — para contar ao santo homem, que ao ouvi-la, benzeu-se, preocupado.
— Minha filha, se apegue com Deus que ele irá protegê-la. Se ele é por nós, ninguém será contra nós. Mas, depois de tudo o que disse, e você sabe que não acredito nessas feitiçarias dessa mulher, creio que seja melhor fazer o que ela pediu. Afinal, se trata de caridade e esse chá de folhas, durante sete dias. Não há mal nisso. Mas não vá comentar isso com mais ninguém, minha filha.
Filomena concordou… Seguiu à risca todas as orientações de Ioiô. E como nada lhe aconteceu. O resultado dos exames apontaram que sua saúde estava perfeita e até os calores cessaram. Acreditou que Ioiô a salvou do pior. Como agradecimento, mandou uma linda cesta de flores e frutas para a casa da querida amiga. Contrariando o padre, Filomena espalhou a notícia aos quatro cantos da cidade… E quando um novo bilhete foi entregue pelo caçula de Iolanda a outra moradora, a mulher se arrumou e correu para visitar Ioiô. Aceitou o chá, a fatia de bolo, olhou as cartas e aguardou pela tradução daqueles desenhos sem sentido ou significado.
Dona Ioiô tinha contato com o mundo oculto… Recebia avisos de malfeitos e encantamentos que precisavam ser quebrados e, alma caridosa que era, se dispunha a ajudar a ensinar como se proteger. O padre, em suas andanças por aquela rua, observava a velha casa com ódio. A mulher que ele havia difamado tornou-se figura respeitada, em pouco tempo. Recebia visitas frequentes… Com ou sem bilhetes. Mesmo que tudo estivesse bem, as mulheres procuravam por proteção e ela não se recusava. Ele tentou — durante as missas — alertar do perigo que era aquela casa-mulher. Mas não conseguiu contaminar o rebanho, que havia beatificado Ioiô, sem a sua autorização. Filomena contava — em meio a um pesado trago de cigarro — que a única pessoa que havia se recusado a ir até lá, fazendo em pedaços o bilhete de dona Ioiô — obedecendo ao padre — tinha morrido durante a refeição, sentada diante de toda a família… engasgada com um pedaço de pão.
— Dona Ioiô mandou bilhete. E ela fez o que? Ignorou. Deu no que deu. Eu só recebi uma vez e fiz tudo que ela me aconselhou. Estou aqui, bem viva, saudável e sem os tais calores — cochichou —, e meu marido e filhos estão todos bem.
— Nunca recebi bilhete — disse uma das vizinhas, benzendo-se —, mas fiz visita a dona Ioiô… e levei um presentinho. Ela ficou tão satisfeita que colocou as cartas para mim. E a mulher é danada, viu? Acertou tudo o que me disse.
— Comigo também foi certeira. Eu bem que estava desconfiada que tinha uma víbora tentando dar o bote no meu marido. Ioiô confirmou e disse o que fazer para cortar a cabeça da maldita cobra. E eu fiz tudo direitinho. Comprei as peças vermelhas — murmurou, fingindo vergonha — e ao tirar a camisola pedi a ele que passasse a loção de ervas, no meu corpo todo.
As mulheres quiseram detalhes da loção poderosa… interessadas em manter a santidade do casamento, principalmente entre as quatro sagradas paredes do quarto.
— Acho que vou levar um presentinho para Ioiô, no final da tarde. Não custa nada agradá-la, quem sabe ela me recomenda essa loção maravilhosa.
— Sem falar que ela sempre serve uma fatia daquele delicioso bolo de fitas. E, de repente, ela põe as cartas para mim…
— Está sentindo alguma coisa, Filomena?
— Não! Mas da outra vez foi uma cascavel quem me desejou mal, vizinha… e ela andou passando na minha porta. Todo cuidado é pouco.
— Você está certa! Melhor se prevenir porque essa cidade está cheia de cobras.
Lunna Guedes... sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecia o outono em qualquer hemisfério e escreve por escrever somente, às vezes na própria pele ou nas paredes do corpo, por dentro… Gosta de caminhar e contar os passos e de ser perder de si e do mundo alheio… às vezes, atende por Catarina!