Três poemas de Heloisa Helena Garcia

Paulistana da gema, nasci no bairro da Bela Vista. Passei por outros bairros, mas sempre vivi em apartamentos, e, talvez por isso, adoro olhar a cidade do alto, apreciando a combinação de pessoas, ruas, árvores, postes, casas, prédios em diferentes perspectivas. Quando escrevo, o movimento é semelhante, voltado para dentro, explorando diferentes perspectivas de mim, da minha história e das minhas relações. Escrevo sobre o que penso e sinto, dos lugares (in)completos de mulher, filha, esposa, amiga e mãe. Desde 2020, participei de algumas coletâneas, assumindo meu lugar de escritora, que dá expressão e sustentação a todos os outros.

RAÍZES  

Caminho inteira e sozinha pelo parque quase deserto.
Bendigo a chuva recém caída no solo úmido e fértil.
O céu se move num acolchoado denso de nuvens sobrepostas.
Tons de verde e cinza se mesclam numa harmonia fria que agrada meus olhos.
No tapete de folhas, o tempo se revela em amarelo, ocre e grená.
Observo o enlace das raízes — grossas, curvas, ásperas —
que em seus caminhos cruzados,
se abraçam,
se compreendem,
se perdoam.
Qual graveto fresco e frágil, me reconheço pequena e sedenta aprendiz.

TRANSFORMAÇÃO

Madrugada.
Acordo de um sonho agitado: preciso abrir espaço para o sono poder voltar.
Me arrasto até o banheiro, sem incomodar os que dormem.
Escrevo com pressa, antes que a lâmpada trêmula se apague.
Volto para a cama macia, ainda morna.
O ronco suave do frigobar; os pingos de chuva marcando o tempo.
Alguém ressoa baixinho ao meu lado.
Estou mais calma: o que era incômodo se tornou presença.

ANOITECER DA ALMA  

É hora 
de acalmar o peito, desfazer o laço, afrouxar o passo.
Já é hora 
de acolher o tempo, abaixar o fogo, escutar o céu.
É hora, sem demora 
de se recolher, reconhecer e desapegar.
É chegada a hora, agora,
em que para ser eu é preciso desatar o nós.

A minha relação com a noite: inimiga/amante/amiga…

Houve um tempo que era de medo. Bastava o céu fechar as cortinas e o escuro invadir o meu quintal que esse sentimento anestesiante reinava absoluto no meu corpo, por causa da dor. Eu tirava os chinelos e pisava no chão, para que a terra me fizesse firme ao caos que se estabelecia em mim. A dor é um bicho estranho e noturno. Mesmo quando eu estava entre os corredores, amparada por agulhas e fios… o medo surgia, como um fantasma. A dor era feito a noite sem lua-estrela… E não havia como não associá-la ao que a dor fazia comigo… Um vácuo, tipo guerra em que a explosão é apenas o medo de doer. E doía tanto. Havia noites em que doía tudo.

Mas, eu já fui amante da noite. Quando caminhei pelas ruas escuras. Não me lembro de me sentir tão segura quanto naquele tempo. O moço que cuidava do cemitério me levava pelas mãos, nas madrugadas mornas e era o meu guia. Passo a passo do meu lado… Voz de amparo e de cuidado. De um lado, o rádio onde eu expunha meus sonhos e do outro, o cemitério. Eu era a amante da noite que era o lugar das sombras do muro que me acolhiam sob os olhos atentos do moço que cuidava do repouso… a última morada de muitos.

Mesmo lembrando que antes da dor, o que me acalentava a alma era a rua estreita, que me levava mata adentro e no descampado, onde eu via as estrelas, a via láctea e suas constelações. Foi ali que a noite se tornou minha amiga. Eu era a menina que deitava no tapete debaixo das estrelas e sabia de cor todas as constelações. Conhecia os atalhos e era guiada pelos vagalumes.

Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias… 

Corredores, codinome: loucura, de Mariana Gouveia

Em algum momento você teve a sua sanidade questionada?

Maria, personagem principal de Corredores descobre que não existe limite entre a sanidade e a loucura e que enlouquecer aos olhos dos outros, poderia ser a única maneira de preservar-se…

Olá,

Hoje é dia de sugestão de leitura aqui no blogue! E vou aroveitar a leitura comentada de março lá no instagram para indicar: Corredores, codinome: loucura, de Mariana Gouveia, que é um livro que exibe em suas páginas um elemento drásticamente contemporâneo: o abuso que crianças sofrem dentro de suas casas. Um lugar que deveria representar segurança e que se revela um verdadeiro pesadelo para meninas e meninos.

Não é atoa que é nos quartos residem monstros que se escondem dentro de armários ou debaixo das camas…

Precisamos estar atentos aos sintomas. Uma criança, vítima de abuso parental, muda o comportamento de maneira repetina: passa de criança calma e tranquila para alguém irritadiço ou o contrário disso. Demonstra medo e incômodo quando na companhia de um adulto — geralmente o seu agressor. E há casos de descontrole dos esfíncteres.

Muitas crianças — como a personagem de Corredores — são desacreditadas pelos adultos, que acham impossível que o adulto apontado por elas, seja capaz de tal gesto…

Na ficção escrita por Mariana Gouveia, conhecemos Maria, que ao atingir a puberdade, atrai os olhares do namorado da mãe: figura confiável e respeitada por todos. Ele se defende, acusando-a de loucura e convence: a mãe, a vizinhança e a própria Maria que começa a duvidar da sua sanidade.

É uma história forte, densa e que vai de te deixar completamente sem fôlego. A escrita poética de Mariana Gouveia te transforma e emociona. Você não vai conseguir tirar os olhos de Maria, que foi largada na loucura do outro sem ao menos ser ouvida. Teve seus sonhos amassados e jogados no lixo, como se fosse um papel velho. A esperança perdeu-se em meio aos gritos de socorro que foram abafados dentro de um corredor vazio sem qualquer chance de vida.

Clique aqui para continuar lendo a rezenha de Suzana Martins

clique aqui para ler o primeiro capítulo de Corredores

Desafio de Poesias: Mulher de nuvem

Scenarium

A poesia é um corpo que fala, sente e se movimenta por versos ou através dele.

O que se pretende nesse Coletivo é que a Mulher escreva-se enquanto pele sensível ao toque, ao tempo, ao lugar, as emoções, ao outro, a si mesma e nos exiba a sua Nuvem em 05 poemas que juntos sejam uma mesma matéria densa e intempestiva, como apenas as mulheres o sabem Ser..

Participe com a sua poesia… seja pele-avesso-desejo!
Organização. Anna Clara de Vitto

Quatro poemas de Nirlei Maria Oliveira

Sou aquariana que gosta de viver nas dobras das nuvens para sentir as asas e o cheiro inebriante da liberdade.

Apresenta sérias dificuldades para manter os pés no chão. Prefere sonhar acordada ou fantasiar-se de Alice no País das Maravilhas para brincar nos jardins do mundo real.

insônias e rotinas

horas tardias
não há ninguém — lá fora —
— o silêncio persiste —

olhos postos na janela a pressentir — o tempo —
a enfrentar lonjuras e pensamentos dispersos

e, ainda assim, mirar e mirar
a paisagem — mundo — de nós
no tom sépia dos retratos

valiosas urgências e emergências
sejam estas: contar
e recontar — estrelas e lua

quase dormir e amanhecer com olhos de ontem
ocupar-se com as miudezas diárias
e tragar o amargo da rotina

não aprendo a conviver com as horas
insones e dias iguais

(prefiro o brilho da lua e das estrelas
ao ofício das repetições)

gatos rondam a rua

sintomas, apenas sintomas 
de alegria
de euforia
de alforria

assim, amanheço
revestida deste sol insistente de quase 10h
que entra pelas janelas abertas e se
espalha pelo quarto

preciso
habitar as urgências das manhãs
como quem volta da guerra
com sede voraz de viver — o hoje —

vestida para:
atravessar armada de versos
— as ausências —

encher a boca
com versos entre os afiados dentes
morder palavras inquietas e observar a paisagem morna
que entra pelas minhas retinas, ainda sonolentas

ainda assim, sigo rituais das manhãs:
repetição repetição repetição
quem sabe o sagrado permanece

queimar velas e incensos para os anjos e
para os vivos
assim, apenas assim, o dia começa

despeço da casa
pés na soleira da porta
ir sair partir ir

gatos rondam a rua
cumplicidade e silêncio

Dos ritos

ritos primeiros

amanhecer os desejos
e romper o riso

jogar dados com o tempo
e perder
o rumo o ponto a linha
o siso o sono e as horas

ancorar os dias
em horizontes sem bordas
rasantes ou minguantes
desaguar vontades em solos
porosos e férteis

rito solene

beber o sol lentamente
quebrar a taça e rir das (in)certezas

rito perene

o cotidiano
— é para ser brincante —

Brotos botões rebentos

caminhamos pelas bordas — tempo suspenso —
andamos incautos por margens e fronteiras
tudo é incerteza na — soleira do amanhã —

a luz
 — insurgente —
reverbera nos vãos e desvãos do agora

— lá fora — 
pela janela aberta minhas retinas turvam
explodem rebentos de flores
 — rebentação —

ainda há tempo para destorroar a terra
 — nada brota sem semeadura —

Marielle… presente!

“Eu enquanto favelada, eu enquanto vereadora, que sei que desde a minha época de pré-vestibular comunitário, quando tive que fazer mais pré porque as escolas da região não me davam condições de tá nas Universidades Públicas, já sabia que isso era político”.

Marielle Franco
1979 — 2018

Cinco anos se passaram… e a pergunta ressooa, sem respostas. Foi-se a Mulher. Mas não foi em vão. Sua luta se tornou herança de muitas outras…

E neste 14 de março (que soube ser o dia nacional da Poesia) convido você a leitura dos textos escritos ontem e hoje por encomeda para um projeto que é memória para que a gente nunca se esqueça que a luta continua por ela e por todas nós…

Boa leitura…

Três poemas de
Adriana Aneli

Um grito…

Uma missiva para Marielle

Dois poemas de
Nic Cardeal

Uma crônica de
Obudlio Nuñes Ortega

Coluna Plural | Noturno

Quando garotinho, nossa mãe nos acordava à 4h30 da manhã para tomarmos café. Eu dormia no corredor, numa cama de molas, a qual desmontava, deixava num canto e vestia a roupinha para irmos, meus irmãos e eu, ao Parque Infantil da Barra Funda. Na Periferia de poucas luzes, a escuridão imperava e as estrelas brilhavam como nunca mais na minha vida. Íamos pegar o ônibus já lotado às 5h30. Nesse horário, a noite ainda vencia o dia e somente no verão éramos acompanhados pelas primeiras luzes.

Desde então, já dormia pouco. Costumava ficar deitado na laje vendo as estrelas tremeluzirem seu passado. Atividade que só trocava por programas musicais ou filmes de ação na TV PB de 14”. Nunca supus que no futuro a minha atividade seria eminentemente noturna, mas na adolescência só dormia com as primeiras luzes. Passava o silêncio a ser preenchido com os sons das palavras que brotavam em minha mente e escorriam por minhas mãos e dedos para os papéis transbordados de sentenças definitivas.

O pretenso escritor sentia como se a noite abençoasse as suas frases feitas de estrelas e cantos de galos, muito comuns naquela época. Por eles, conseguia marcar o tempo – 4h… 5h… e sol a me pedir que dormisse. Estudava à tarde. Nunca saía para lugar algum, a não ser para dentro de mim, onde escondia os meus segredos testemunhados pela noite que eu considerava uma entidade – com corpo, intenções e entendimentos.

Filho da noite, à mãe compreensiva confessava a razão de temer tanto às mulheres. Os meus amores infrutíferos, feitos para acabar, jaziam num canto sob pilhas de cadernos em que os vivia profundamente. Amá-las sem conhecê-las salvava a minha dignidade das objeções por ser tão canhestro. Quando a lua surgia, sabia que era aceito e eu a namorava recebendo beijos em meus olhos…

Obdulio Nuñes Ortega — deu-se que refugiados da Guerra Espanhola aportassem no Brasil e dentre seus frutos, uma moça uniu-se a um gentio da terra nova, refugiado do sul do continente. Geraram um brasileiro desorientado do sentido da vida e desequilibrado por força da Balança que o rege. Supera seus íntimos mistérios, os expondo a quem quiser lês-los, no cenário da palavra. Acredita ser escritor, o melhor que puder ser tendo como base a si mesmo. Espera não alcançar a eternidade, mas sabe-se infinito. 

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Três poemas de Rozana Gastaldi Cominal

Mantém os sentidos em alerta: Eu vejo. Sinto. Vivo. Ufa! Respiro. E não piro. Suspiro! Escreve porque sonha com uma sociedade menos desigual onde o respeito mútuo seja a base do diálogo, onde a poesia  e a sororidade estejam na ordem do dia. Acredita na força dos coletivos e com eles  faz voz. Autora do livro de poesias “Mulheres que voam” , Scenarium, 2022. Participou dos Coletivos da Scenarium Nascer pela segunda vez (2021), Andarilha e da edição da Revista Plural Cartografias das sombras (2022).

Facebook: https://www.facebook.com/rozana.cominal
Instagram: https://www.instagram.com/rozanagastaldi/

violeta & malagueta

consumo-me em atitudes
e sentimentos adversos
penso
não ando
estanco
sinto
movo
removo o flanco

metamorfose dialética
violeta e malagueta
genial e geniosa
estupenda e estúpida
eufórica e neurótica
sensual e sexual

razão enigmática
consinto que sou volúvel
mas não irresponsável
assumo o que sou
assumo o que faço
não é por acaso
que tenho um caso
com o caos

Do livro Mulheres que voam

Ao renascer
conecto-me com o universo ao redor
Outra vez em  guarda e (or)ação
sobrevivente sou
vidas que esgarçam e entrelaçam

Do Coletivo Nascer pela Segunda vez

trajetória insubmissa

corpo leve
circunscreve
branco como neve
ultraleve
peso pesado
lesado

caminho tortuoso
que se lança
que dança
que tensiona
que flutua
que insinua

tela escultural
forma harmoniosa
coluna vertebral
geometria sinuosa
curva espiral
corpo que pensa

Leitura comentada  | Corredores, codinome: loucura

Olá,

Acabou o Carnaval (eu acho) e aterrisamos em Março… espero que esteja pronto para as novidades. Começaremos com um novo e delicioso encontro com o livro Corredores, codinome: loucurada querídissima Mariana Gouveia. Eu e a Suzana Martins já estamos ansiosas para comentar o livro que conta a história da jovem Maria, uma menina vítima de abuso dentro de casa e que ao gritar e espernear, denunciando o padrastro, acaba sendo levada para um Hospício, onde o horror ganha nova definição.

O romance, publicado em 2018 trata a loucura da jovem como a única justificativa possível para denúncias feitas e consideradas inadequadas pela própria mãe, afinal, o homem que Maria acusa, jamais seria capaz de tal ato.

Corredores é o cenário da história de Maria… que é trancada num hospício pela própria mãe após ser vítima de abuso sexual dentro de sua própria casa. Loucura atestada, a solução é entregá-la aos cuidados de Mathilda — uma mulher que não enxerga pessoas, apenas números numa folha mapeados pela condição determinada por ela e, assegurada pelo Estado que só quer se livrar de seus “doentes”.

 Anota aí, dia 24 de março, às 19h30

Carta para Mário

Olá,

Seguindo o ritmo dos desafios de escrita lançados por mim nesse 2023, venho te convidar a escrever uma Carta à Mário… de Andrade, o homem-poeta modernista, em resposta ao poema escrito por ele… e publicado no livro Paulicéia Desvairada, em 1922…

O livro é uma obra modernista, um marco na literatura brasileira e tem a cidade como tema-cenário. Somos conduzidos por uma espécie de “mapa” particular traçado pelo modernista…

No poema abaixo, você percebe as mudanças de ontem e de hoje, a força do capital que determina os rumos e compreende a polifania poética descrita pelo poeta…

O cortejo
Mário de Andrade

Monotonias das minhas retinas…
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…
Todos os sempres das minhas visões! “Bon Giorno, caro.”

Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades…
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! os tumultuários das ausências!
Paulicéia — a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção…
Giram homens fracos, baixos, magros…
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…

Estes homens de São Paulo,
toso iguais e desiguais,
quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
parecem-me uns macacos, uns macacos.

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