Qual ano deixaremos para trás?

Olho no calendário na parede da cozinha e vejo as marcas nele. Com círculos em algumas datas marquei dias que vivi. O dia em que a suculenta deu flor pela primeira vez. Se bem, que alguns ficarão na memória para sempre. Estão marcadas as trocas do gás — foram 6 ao longo do ano. O dia da super lua, do eclipse e do aniversário do Chiquinho.

Parece que foi ontem que janeiro começou e tudo que eu queria era renovar a esperança. E já é dezembro de novo. E quais os planos que fiz e não cheguei a cumprir? Eu pedi e desejei saúde, dias felizes, mais amor, respeito… E não dá para não rir das frases clichês. Nem ouso fazer promessas… Elas ficam suspensas em meses adiados. Percebi isso assim que me tornei adulta.

Eu lembro dos trabalhos que fiz… Dos que tive de interromper por algum motivo e da saudade sentida dos que foram.

Quando eu trocar a folhinha velha pela nova, o ano de 2022 será passado e não posso dizer que sentirei saudades. Que ano estarei abandonando quando 31 de dezembro cerrar o dia?

Só me lembrarei dos banhos na chuva, do ipê que floriu cinco vezes nesse ano e das brincadeiras com os sobrinhos.

Um dia se intercala no outro e, de repente, será um ano novo, com suas nuances de velho, de antigo, de lembranças. Mas ainda restam alguns dias para viver — antes de abandonar esse 2022 de caos e esperar pelo 2023 com a esperança renovada.

Antes, irei ali… onde me chamaram para brincar de amarelinha e eu aceitei a brincadeira no ato e tenho uma pedra em mãos. Vem comigo? E traga uma pedra e muita disposição.

Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias… 

O ano do fim das ilusões

Marcamos o encerramento de um texto com o ponto final ou reticências… Porém, assim como pretende expressar o sinal de reticências, a repercussão da sua leitura poderá se espraiar para além dele. Lavoisier decretou definitivamente através da palavra a substância de nossa existência para além da composição-decomposição químico-física do mundo que nos rodeia, aqui dentro e além, fora: ”Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E, apesar de inúmeras vezes não nos vincularmos a ela, somos resultado de experiências naturais de milhões de anos na Terra.

Sobre o ano que termina, poderíamos perguntar: o que ele deixa de significado para a História? A minha crença é que 2022 não ficará restrito aos 365 dias que oficialmente se findará na vigésima-quarta hora do dia 31 de dezembro. Creio que águas passadas continuam a mover moinhos, por mais que a “desculpa” pronta dita por aqueles que carregam responsabilidade acrescente o “não”. Vale para os bons e os maus feitos.

Normalmente, os fatos são enganadores à primeira interpretação. Alguns malvistos de início, com o tempo demonstram-se redentores. E há aqueles recebidos como auspiciosos que no decorrer do tempo repercutem negativamente. Mais gravemente, devastam o que encontram pelo caminho como se fossem água morro abaixo ou fogo morro acima. As avaliações precipitadas são sempre enganosas. Quando as acertamos, será sempre por puro e inesperado senso de oportunidade.

Porque é assim. Eu, por exemplo, em meados de 2020, anunciei que aquele ano havia se iniciado em 2019 e, com boa sorte, terminaria em 2022. Errei. Em 2023, 2019 continuará a ditar a sua marca através da Covid. As aglomerações de final de ano deverão elevar o número de óbitos da atual média de 130 por dia. Assim como o má-administração do País, sob a égide do negacionismo com faceta fascistóide do governo central, fez eco em boa parte da população brasileira.

O que supostamente fora uma reação à corrupção institucional encontrou em um Miliciano, o paladino da justiça, carreando o ódio da Classe Média (ou que se considera como tal) às diferenças raciais e sociais imiscuídas ao ranço patriarcal que englobou a identidade de gênero, rejeição do direito das mulheres e aos que não tenham as plenas capacidades físicas e mentais. Demonstrando que somos um povo doente – pobre e elitista – como se estivéssemos presos a uma miscelânia que uniria Síndrome de Estocolmo com Munchausen – neste último caso, acresce-se o elogio à enfermidade – como bandeira.

Na falta de escolhas “corretas”, fizemos um percurso tortuoso que provavelmente é a mais acertada para 2023, politicamente. Tanto quanto em 2018, eu optei por voltar o meu olhar para a Esquerda. Ainda que saiba que no Brasil, isso não queira dizer muita coisa, já que os posicionamentos muitas vezes se mostram ambíguos. A única certeza que tenho é que a Direita é igual no mundo todo – perniciosa em manter as populações excluídas do progresso humano, em que pessoas devam ficar engessadas em um sistema de castas, como se vivêssemos no Século XVIII.

2022 nos mostrou que a guerra pode surgir em qualquer lugar. A Europa está mergulhada na luta fraticida – o pior que pode existir, por ser mais rancorosa. A luta não é apenas para ampliar as linhas fronteiriças, mas para impor a agenda de senhores saudosos de um império que não existe mais. O desejo em propagar no tempo modelos de dominação ultrapassados, baseados no orgulho da nacionalidade não tem mais sentido em um planeta tão diverso em tendências de desenvolvimento alternativos à antigos processos de governança.

Ao mesmo tempo, percebemos que a Terra precisa do esforço humano coletivo para defender o meio ambiente que sofre como nunca os efeitos da atuação equivocada das lideranças governamentais, calcada no setor econômico que busca lucro a qualquer custo. Ao fina, a conta não fecha. Ficaremos sempre no vermelho. Cada vez mais a Meteorologia será motivo de conversas entre pessoas que discutirão fenômenos climáticos como se fosse pauta obrigatória.

Economicamente, é uma questão de tempo que o Oceano Pacífico volte a ser aquele em torno e através do qual seus países assumirão o protagonismo na produção da riqueza, capitaneada pela China. Os países separados pelo Atlântico – os da América e os da Europa – com populações menores e economias empacadas, tendem a perder liderança em várias áreas de atuação planetária. Porém buscarão estabelecer uma agenda centrada na observação dos Direitos Humanos e no uso de tecnologias limpas, caminhando no sentido inverso ao de seu histórico de exploração colonialista em séculos passados. Pelos menos em aparência, é a tendência que espero ver acontecer.

O ano do fim das ilusões – título que usei para este texto – diz mais respeito ao meu desejo do que um prognóstico factual. Falam em ciclos históricos repetidos de 100 em 100 anos, mas no Brasil isso parece estar reduzido drasticamente para 20, 25 anos. Ivan Lessa, escritor já falecido, chegou a dizer que “de 15 em 15 anos, o Brasil esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos”. Isso colabora para que, de tempos em tempos, caiamos na fossa péptica social que nos coloca em posição astral de um Mercúrio Retrógado. É como se caminhássemos passos para atrás ano após ano.

Obdulio Nuñes Ortega… deu-se que refugiados da Guerra Espanhola aportassem no Brasil e dentre seus frutos, uma moça uniu-se a um gentio da terra nova, refugiado do sul do continente. Geraram um brasileiro desorientado do sentido da vida e desequilibrado por força da Balança que o rege. Supera seus íntimos mistérios, os expondo a quem quiser lês-los, no cenário da palavra. Acredita ser escritor, o melhor que puder ser tendo como base a si mesmo. Espera não alcançar a eternidade, mas sabe-se infinito. 

Que ano(us) foi esse?

Trabalhei e realizei muito esse ano, porém, fecho o ciclo 2022 com a sensação de nada feito. Anestesia geral nas emoções. Culpa da pandemia e do novo estilo de vida não vivida? Vá saber!

Tenho por hábito, refletir sobre tudo que ocorre no ano que termina. Peso os prós e os contras dessa vivência. Esse ano não consegui fechar totalmente porque, sinto como se não tivesse iniciado. Talvez, o fato de passarmos obrigatoriamente a viver em bolhas, evitando aglomerar, tenha contribuído para meu espírito tornar-se ermitão. Mais do que já era.

Só me sinto bem, quando estou no santo isolamento de meu apartamento. Algumas vezes em que tive de permanecer em locais públicos ao lado de muitas pessoas desconhecidas, sofri calafrios e desejo absurdo de me desintegrar e reunir minhas moléculas em outras paragens, de preferência, numa bela praia deserta, bem longe da humanidade.

Arrê que chego ao término do ano (mais um), com a sensação de não o ter vivenciado, de fato. Uma forte impressão de que estive de fora e — como boa apreciadora — apenas obtive sensações de prazer, sem dele fazer parte. Isso me trouxe lembranças do filme Sleeper, de Woody Allen. Terei eu utilizado sem consciência, o Orgasmatron?

O ônus de chegar ao final de 2022 sem esboçar a máscara da felicidade instagraniana, transforma você em um ser humano considerado esquisito, o fora da casinha, a criatura não sociável. E devo ser, pois a felicidade imposta, a alegria produzida e vendida pelas grandes redes de loja, criada pelas agências de marketing, não me representam.

Termino o ano cansada física e mentalmente, carregando a preocupação do que nos aguarda em 2023. Só ativando os asanas Ardha Vrikshasana (postura da árvore) e Virabhadrasana (postura do guerreiro) para dar conta de controlar e modificar — para melhor — nosso Samskara.

Sigo com um olho fechado e outro aberto controlando a respiração e reproduzindo mentalmente o mantra OM. Afinal, apesar de tudo e talvez por tudo, sou otimista e desejo mais é que o próximo ano seja bem-bem-bem melhor que esses quatro pelo quais passamos e sobrevivemos.

Roseli Pedroso é canceriana regida pela Lua. Bibliotecária. Leitora voraz e escritora por necessidade. Em 2010, participei do curso de criação literária promovido pela Editora Terracota em parceria com a Universidade Cruzeiro do Sul. Fruto desse curso foi a participação da antologia de contos Abigail. Não parei mais.

Surgi nesse mundo em plena noite de São João com a curiosidade nata de quem veio a esse mundo para tudo registrar. Sigo a risca esse lema e através de meus escritos, desenho minha história e invento muitas vidas. Acho que gosto de ser Deus!

Sobre pisca pisca, fogos de artifícios e recomeços 

Escrevo esse texto hoje, mas queria estar comemorando a mais uma final de copa do mundo, ao invés disso, estou esperando o almoço de domingo sair, enquanto minha mãe- que nada entende de futebol — não que eu entenda muito, diz que jogador bom mesmo era o Pelé, que não vai ter o prazer de ver o Brasil ser Hexa. Acho que o sentimento de angústia dessa vez é pior, porque semana que vem é natal. porque fica o gostinho da desesperança patriota. Porque é mais uma final da Argentina com a França. Porque de Los Hermanos eu só gosto da banda.Porque meus alunos nunca viram o Brasil passar das quartas de final. Porque depois dos 7×1 eu disse que nunca mais torceria ou choraria de novo pela seleção, antes disso vezes dois porque na copa de noventa e oito eu só tinha oito anos, mas rezava várias Ave Maria e Pai Nosso no banheiro da casa da Cleusa, pro juíz expulsar o Zidane. Porque é a última copa do Galvão, mas eu sempre vou lembrar do “Vai que é tua Tafarel”. Porque as ruas eram enfeitadas. por que eu não via maldade nas coisas e no mundo. Porque me sinto hipócrita falando de futebol mesmo entendendo que a CBF e FIFA estão no topo das instituições que bancam esses espaços de entretenimento símbolo da cisgeneridade e seus milhões de dinheiro. Porque eu também não gosto de carnaval mesmo reconhecendo que é uma festa legítima . Porque minha editora pede uma prosa e eu entrego uma crônica. Porque desde a minha vida adulta eu nunca montei uma árvore, mas este ano enfeitei minha guitarra com um pisca pisca . Porque meus primos já compraram os fogos de artifício e eu já temo pela minha cachorra . Porque final de ano é tempo de arrumar a casa e jogar os papéis inúteis fora. Porque este ano o verão parece estar mais tímido. Porque na retrospectiva vai ter o choro livre da democracia e do amor que prevaleceu. Porque tem sempre um ano novo a ser escrito e isso já vale a pena dois dedos de prosa. Adeus, dois mil e vinte dois. Não sei dizer se sentirei saudades.

Lua Souza… A autora que vos fala é uma filha de Letras. Gosta do som dançante do encontro entre vogais e consoantes, gosta dos radicais. Gosta de uma cartase, é a própria epifania materializada. Gosta das formas e imagens. Gosta de tomar um porre- de palavras. Também gosta de  observar as pessoas nos trens, parques e escrever sobre elas. Gosta do jeito que a cidade olha para ela. Gosta de sorrisos, aqueles com todos os dentes. Gosta de pequenas coisinhas que a salvam do caos: música é uma delas. Gosta de bandas de rock e poetas modernistas, gosta das referências, gosta que as coisas façam sentindo no mundo dela- da Lua. Gosta do nome Clarice, gosta da Maria Ribeiro e da Viviane Mosé.

Gosta de ser metódica, quase demodê. Gosta do barulho de máquina de escrever. Gosta de rimar.
Gosta da palavra gostar.

Mais um champagne, por favor

O caminhão da mudança chegou! Nem acredito! Fiquei contando no calendário e marquei com um X cada dia que faltava para este dia festivo – 31 de dezembro de 2022!  Antecipadamente, já estou comemorando! Abram os Champanhes! Nós merecemos! 

Não gosto de fazer contabilidade, mas uma coisa eu sei,  este ano  foi um tormento. Estamos há quase um século em 2022. Parece que ficamos presos em um filme de terror bem trash da idade das trevas. Uma nuvem densa e escura caiu sobre nós.  

Ainda bem que tudo passa. Aleluia! É a hora exata para você puxar o carro, dar o fora e sair à francesa! Leve todos os seus, inclusive os bichos de estimação.

Por gentileza, não faça barulho. Arrume todas as suas tralhas. Desocupe o lugar. Não seja infantil, não vá fazer xixi em todos os cômodos da casa, apenas por pirraça. Estamos por um fio para perder a pouca paciência que ainda nos resta. Adoro ser indelicada: perdeu, mané! 

Sobrevivemos, entre trancos e barrancos, chegamos ao fim de um ciclo. Tive alguns percalços, mas muitas alegrias e realizações! Ufa! Desce mais champanhe! Quero mais é comemorar! Eu mereço! 

Sigo, por aqui, pensando no meu vestido branco, nas flores vermelhas para o cabelo, e nas festas para celebrar  2023. Que o novo ano venha com os pés na porta, arrebentando tudo com explosões de alegrias e chutando todo o encosto para os confins! 

Ainda bem que eu  sou devota de uma boa banda de rock — Legião Urbana — para recarregar as energias e começar o ano novo cantando: 

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo tempo do mundo
Todos os dias, antes de dormir
Lembro e esqueço como foi o dia
Sempre em frente
Não temos tempo a perder

Nirlei Maria Oliveira… poeta e Bibliotecária com mestrado em Ciência da Informação, reside em Campinas, SP. Autora do livro de poemas Palav(Ar) (2021). Organizadora das coletâneas: Quarentena Poética (2020) e Cotidiano, Poesia, Resistência(2021).
Tem poemas publicados nas revistas: Travessias Literárias, Cult — Lugar de Fala, Literatura e Fechadura, A Palavra No Agora do Museu da Língua Portuguesa, Literatura Brasileira no XXI, Partilhas Poéticas do Museu Ema Klabin, Acrobata, Tamarina Literária, Aboio, Ser MulherArte, Ruído Manifesto, Sucuru, Errancia  (Universidade Nacional Autônoma do México), Desvario, Entreverbo, Revista Toma Aí Um Poema!, Kuruma’tá — Revista De Culturas E Afetos, Caderno Literário Pragmatha.

Qual ano deixaremos para trás?

Olhei lá para fora… e dei pelos dias-horas-semanas, o mundo, a vida, a realidade. Estamos em pleno dezembro. Verão de 2022. Respirei fundo. Fechei os olhos e tentei juntar momentos, como quem varre o chão e recolhe pedregulhos, folhas… para jogar fora.

Vi a tarde caindo, toda envelopada em nuvens escuras, densas…

Promessas de tempestade.

Eu nunca me entendi com essa palavra: promessas. Não prático… e desconfio das que são feitas por aí. A maioria não se cumpre. São vazias e a sensação que eu tenho é que o sentido é esse.

Um trovão explodiu nos ares.
Coisa mais linda este som rouco-forte.
Uma espécie de rasgo.

Respirei fundo de novo e de novo e de novo… Senti o vento frio úmido — sutilmente salgado — passar por mim… e levou tudo embora com ele, para bem longe… inclusive a tarde e a chuva.

Outra promessa que não se cumpre.

Dentro da noite, me pus a vigiar uma ou outra estrela. Pensei nos anos que me trouxeram até aqui. E num estalo… me lembrei-visitei o primeiro. Dois mil e dois.

Passou tão depressa… foi ontem. Eu brinquei tanto e tanto naqueles dias de agosto… tropecei em esquinas. Descobri caminhos-paisagens. Fiz um mapa de lugares-pessoas apenas para me perder de mim, do passo e da cidade. É bom demais se abandonar à própria sorte… outra palavra estranha que escrevo sem crédito.

Eu cheguei a cenários vários naquele setembro-outubro-novembro-dezembro. Alguns lugares eram bem curiosos… A cidade parecia fingir esquecê-los para pessoas como eu encontrar, lembrar e oferecer a outros em linhas escritas — registros polaroides…

Duas décadas depois… olhando para trás, não sei dizer onde começou este ano. Não consigo me lembrar onde estava. Talvez na varanda a observar a avenida com nome de pássaro. Ou tenha fechado os olhos mais cedo, antes da meia-noite. Não sei. Falta memória-lugar…

Quando foi que este surto aconteceu?

Olho para trás e me lembro da última festa. Alguns textos escritos a respeito do último dia do ano. Eu tenho vários últimos dias em mente. Do ano… vida… realidade.

Lembrei da tal festa a la Gatsby… todos nós reunidos ao redor de uma mesa farta. Gargalhadas altas. Gente vestindo branco-preto-vermelho… Fazendo suas simpatias e as tais promessas de ano novo, que caducam no minuto seguinte…

A conversa era boa… nos distraímos e soubemos que o Ano era outro com algum atraso. Os risos caíram das bocas. Trocamos abraços e desejamos o de sempre. Deu tudo errado…

Mas em que ano foi isso? 18, 19, 20? Parece que alguém embaralhou todos os dias-semanas-meses — como se fossem cartas de um baralho — e distribuiu para todos nós… em uma nova rodada? Mas que jogo doido é esse?

Certeza que isso foi coisa de Cronos. Ou seria Kairos… num momento de revolta contra os humanos e o nosso maldito hábito de abandonar o presente e fincar o passo no futuro e de lá… invocar o passado quando tudo falha?

Teria ele, num instante de fúria divina, nos deixado à deriva: sem tempo e sem consciência do que foi ontem? E agora? Como é que se reorganiza tudo isso? Talvez seja um jogo de pedras e casas feitas com giz no chão… Do céu ao inferno.

Alguém ainda se lembra como se brinca disso?
Quem começa?

Lunna Guedes... sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecia o outono em qualquer hemisfério e escreve por escrever somente, às vezes na própria pele ou nas paredes do corpo, por dentro… Gosta de caminhar e contar os passos e de ser perder de si e do mundo alheio… às vezes, atende por Catarina!

Nas Nuvens | Nuvens…

cavalos-marinhos

sentada na areia da praia olho a imensidão do mar

movimentos e cores entram em minhas retinas

deixo-me embalar pelo fluxo e refluxo das ondas

relaxo e desfaço os pontos de tensão no meu corpo

minha mente divaga e me perco na paisagem

algo flutua acima da linha do horizonte

em meio às nuvens cavalos-marinhos azuis dançam para as sereias

(eu, na areia, contando conchas do mar

e construindo castelos)

Mil Tsurus

desejos florescem nas dobras dos tempos

nos corpos ávidos ou desérticos

centelhas religam cacos em vitrais

e os fragmentos de nós

viver é domar angústias

sustentar com sorrisos o peso

incontornável das dores

felicidade plena são nuvens efêmeras

pequenos tsurus que vejo no céu

(aprendo a dobrar papéis, a coluna e a esquina

sem esperar respostas do tempo)

O gato de Alice

no rosto — o espanto —

silêncio singular

infinito objetos e seres

nas paisagens ilusórias

entre nuvens emerge o gato de Alice 

e seu sorriso enigmático

seguro uma xícara de chá

e anoto mentalmente um poema

— tudo é volátil e ilusório —

me diz o chapeleiro Maluco

 tudo é impermanência, Alice

Nirlei Maria Oliveira… poeta e Bibliotecária com mestrado em Ciência da Informação, reside em Campinas, SP. Autora do livro de poemas Palav(Ar) (2021). Organizadora das coletâneas: Quarentena Poética (2020) e Cotidiano, Poesia, Resistência(2021).
Tem poemas publicados nas revistas: Travessias Literárias, Cult — Lugar de Fala, Literatura e Fechadura, A Palavra No Agora do Museu da Língua Portuguesa, Literatura Brasileira no XXI, Partilhas Poéticas do Museu Ema Klabin, Acrobata, Tamarina Literária, Aboio, Ser MulherArte, Ruído Manifesto, Sucuru, Errancia  (Universidade Nacional Autônoma do México), Desvario, Entreverbo, Revista Toma Aí Um Poema!, Kuruma’tá — Revista De Culturas E Afetos, Caderno Literário Pragmatha.

Nas Nuvens  | De que cor é esse coração alado

Eu sempre fui a menina das nuvens… quando minha mãe me chamava e eu não respondia, ela logo dizia: está com cabeça nas nuvens? Lembro-me da primeira vez que vi um desenho fora das nuances que as nuvens fazem-trazem ao pôr do sol ou ao nascer.

Era um cachorro que corria atrás de um coração.
O coração nuvem ia pulando entre outras nuvens fofas e o cão não alcançava.
Parecia o livro que eu desenhava. 

Mas o vento lá em cima dissipou as nuvens e eu fiquei apenas com a sensação de um pelo fofo na mão.
Quando não tinha mais nada para fazer, deitava-me na grama, para além do curral e ficava a espiar o céu.

Quando cresci, passei a quarar nuvens como meu pai dizia. Os lençóis brancos, de linho, no jirau de madeira pareciam nuvens bailando com o vento. Bastava amanhecer e meus olhos buscavam o céu. Era flecha, em alguns momentos, um anjo, um cupido, um jacaré e cães… ora, buldogue, ora poodle. Sempre fui uma especialista em ver corações nas nuvens. Alados, correndo com o vento… Em viagens, em tardes quase noites, em amanheceres… o pote de algodão se abria e meus olhos buscavam a formação. Às vezes, tão sutil… em outras, tão escancaradas que parecia que alguém, lá de cima, mexia o dedo e o coração se formava.

Tempos depois, quando ouvi Jota Quest cantando sobre: ‘Posso brincarde descobrir desenho em nuvens, posso contar meus pesadelos e até minhas coisas fúteis…’ descobri que eu não era única. Às vezes, os desenhos formam letras como se fossem mensagens cifradas. Em outras, palavras inteiras que me lembram cartas. Já vi pássaros em voos rasantes e potes de ouro entre arco-íris.

Certa vez, em uma das viagens pelo  interior do estado paramos em uma estrada no meio do nada. Achei que estivesse no céu… as nuvens pairavam sobre a estradinha e um coração me seguia, quase ao alcance das mãos. A impressão é que eu estava dentro de um pote de algodão. Minha mão tocava as nuvens quase a um palmo do chão.

Senti como se estivesse ganhando um abraço do céu.

Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias… 

Nas nuvens | Altitude

Nuvens leves, nuvens pesadas. Brancas, rosa, cinza ou negras. De acordo com o humor do dia. Negras nos fazem esperar tempestades, melhor ficar em casa, ou, se necessário sair, usar de cautela e capas, galochas, guarda-chuvas. Em certas estações, podemos temer catástrofes, principalmente onde os governantes se eximem de suas próprias obrigaçõese o povo não respeita a natureza.

Brancas e leves, como flocos de algodão, enfeitam o céu, povoando a monotonia do azul. Nuvens cor de rosa nos fazem pensar em flores, guloseimas, felicidade. As pesadas mas ainda brancas cobrem o sol, escondem as estrelas e soltam a tristeza. Se muito baixas, ao amanhecer, são as brumas que prenunciam um dia quente e ensolarado. Cumpre entender a linguagem desses seres nebulosos, úmidos, que se transformam em chuvas e regam nossos solos, nossas flores, nossos alimentos, desalteram os animais.

Céu de brigadeiro é aquele céu sem nuvens, sem dificuldades ou obstáculos, ideal para os altos oficiais fazerem de conta que ainda sabem pilotar.  Pobreza… Já estive acima das nuvens, aquele mar de algodão branco sob um sol brilhante. E já penetrei uma enorme tempestade negra. Foi como bater num forte paredão. Imediatamente fui jogada para cima, para baixo, para a direita e para a esquerda. Felizmente chegamos ao chão inteiros e com saúde.

Nuvem é o lugar onde vivo. Apesar de manter os pés no chão, com prudência e ponderação, permito-me sonhar, viver o que desejo, imaginar que o mundo é bom. Por outro lado, estando sempre nas alturas, perco os objetos, me atraso para os compromissos, esqueço o que não deveria, erro nas contas ou nas receitas.

Isabel Rupaud — cansada de trabalhar textos dos outros, traduzindo documentos técnicos e jurídicos por mais de 40 anos, meteu-se a escrever tardiamente. Ao mesmo tempo ousada e prudente, acha que o mundo é divertido e os obstáculos e dificuldades constituem desafios. O pé que tem na França, onde morou por quatro anos, inicialmente como estudante de Linguística e depois casada, tem muito peso em sua personalidade.

Nas nuvens  | Corpos tangíveis

O casal de jovens, antes afoitos, experimentam, agora, inertes, a instabilidade de sensações  e mudanças  que estão por vir. O rapaz quer o chão firme,  enquanto a moça almeja voar por entre as nuvens, vasto mar de espuma  a perder de vista.

— Tá tudo tão anuviado!

— Como assim?

— Parece que vai chover! Tudo cinzento lá em cima.

— Tá nas nuvens isso sim, quando vai ter coragem?

— É sério, vai fechar o tempo.

— Não creio que vai fugir da raia!

—  Vixe, vai desabar o mundo…

— O meu já desabou quando acreditei nas suas promessas…

— Desanuvem, mulher!

— Fogo de palha, nuvem passageira o nosso caso.

— É você quem quer partir.

— Aqui já deu para mim, chega de nuvem de gafanhotos no meu quadrado.

— Não é tão nebuloso assim, dá para controlar os estragos.

— Como se fosse possível o controle das coisas… prefiro caminhar nas nuvens… delas brotam sorrisos, flores, bichos, desafios… ei,  melhor correr, se não quiser se molhar….

Algumas pessoas são nuvens lânguidas que dissipam, enquanto outras são nuvens vorazes que pedem novos ares. A moça vai  no balanço, suspensa no ar, sem temer a imensidão do mar abaixo, enquanto ele prefere atracar no porto seguro e não arriscar. Uns vivem  na bolha insular, na surdina, mantêm o fluxo em terreno palpável.  Já outros, ao ar livre,  afrouxam as amarras  em ressonância carnal e enlevo espiritual. 

Corpos fluidos somos, uns mais, outros menos, vale o pensamento que levita, somos, pois,  nuvens de algodão, de açafrão, de chuva que evapora em prazer ou danação.

Rozana Gastaldi Cominal… Mulher que voa, é feita d-eus múltiplos que sustentam o corpo amoroso, político e periférico. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz. Dos espinhos ao néctar das pétalas aninhadas, nada lhe passa imperceptível. Alada, em voo invisível, colhe palavras e pólen em jardins suspensos de seu quintal ou da Babilônia. Franco-atiradora, arma-se do riso apesar da zanga que espreita.  Também os fins justificam os meios em estado de poesia.

Nas Nuvens  | Planeta eu, Lua

A vida adulta chega e paramos de fazer coisas simples como se deitar na grama e apontar desenhos nas nuvens. Enquanto a maioria dos meus colegas avistavam rostos humanos e bichos, eu enxergava planetas, e isso diz muito sobre mim.

Era tão inusitado ver perfeitamente os anéis de Saturno. Não me conformava como ninguém mais os via. O mais recorrente foi rebaixado a planeta anão, mas até hoje o defendo bravamente: Plutão já foi planeta! Talvez eu tenha tendência a gostar dos excluídos. Dona Isabel, uma senhora curandeira da antiga vila Josefina, dizia que nasceriam verrugas em nossos dedos, de tanto apontarmos para o céu — nunca aconteceu comigo.

O passatempo preferido das amigas inseparáveis: Gwai, Jéssica e eu. Gwai também enxergava coisas inusitadas, como instrumentos musicais. Jéssica nos olhava com cara de desdém como quem pensa: vocês são estranhas. As tardes depois da escola passavam num piscar de olhos, exceto nos dias de céu sem nuvens. Um dia eu li que isso — de procurarmos significado em tudo, até nos desenhos das nuvens, faz parte do que chamamos de evolução humana.

Mas parece ser apenas uma desculpa para essa nossa mania de dar pitaco em tudo. Seja como for, não posso negar que é incrível a nossa capacidade de interpretarmos estímulos imprecisos e aleatórios em algo compreensível. O cérebro humano realmente é fascinante. Voltando aos planetas pelos quais sempre fui apaixonada, tanto que, quando adolescente, logo tratei de pedir um telescópio de presente — nunca o ganhei, mas comprei de presente, com o suor do meu trabalho, no meu aniversário de 19 anos.

Tamanha era a minha empolgação; vida social? Só se fosse no meu quintal, a noite e olhando para o céu. Assistia o jornal para ver se algo de especial aconteceria no céu. Certa vez, presenciei um eclipse solar, além das inúmeras Luas de sangue — Donas da noite. Ainda tenho a esperança de conseguir chegar lá nos confins da terra para conhecer a aurora boreal. Eu tenho uma teoria de que as pessoas são como planetas, corpos celestes que orbitam não apenas uma, mas várias estrelas. Poderia facilmente morar na estratosfera.

Por enquanto vivo aqui na terra e vou me preparando para ser nuvem.

Lua Souza… A autora que vos fala é uma filha de Letras. Gosta do som dançante do encontro entre vogais e consoantes, gosta dos radicais. Gosta de uma cartase, é a própria epifania materializada. Gosta das formas e imagens. Gosta de tomar um porre- de palavras. Também gosta de  observar as pessoas nos trens, parques e escrever sobre elas. Gosta do jeito que a cidade olha para ela. Gosta de sorrisos, aqueles com todos os dentes. Gosta de pequenas coisinhas que a salvam do caos: música é uma delas. Gosta de bandas de rock e poetas modernistas, gosta das referências, gosta que as coisas façam sentindo no mundo dela- da Lua. Gosta do nome Clarice, gosta da Maria Ribeiro e da Viviane Mosé.

Gosta de ser metódica, quase demodê. Gosta do barulho de máquina de escrever. Gosta de rimar.
Gosta da palavra gostar.

Scenarium 8 | Coletivo Barquinho de papel

Adriana Aneli

Marcha Soldado

Isabel Rupaud

Barquinhos de Papel

Lunna Guedes

Origami

Mariana Gouveia

Barquinhos

Rozana Gastaldi Cominal

Barquinhos de Papel

Suzana Martins

Delírios de Papel

Barquinho de Papel  | Delírios de papel

A brisa entrou pelas janelas e trouxe memórias que estavam guardadas em baús revirados de saudade. O perfume sutil daquela flor no quintal, a cor do céu — em seu revezamento sublime entre o azul e o cinza — e as cortinas bailando com o vento chegam até mim feito lembranças agridoces de todas as minhas nostalgias pretéritas.

Recordações afloradas na ponta do lápis. Pequenos fragmentos de mim daquela que fui, ainda criança, a bailar solitária pelo quintal em tardes tempestivas.

Olho pela janela das minhas memórias e observo a chuva fina colorindo a tempestade. Entre uma nuance e outra, algumas histórias aparecem bordando elementos no papel. Tomo nota.

Admiro paisagens distantes. Revivo o passado e, longe do presente, aprecio aqueles olhos pequenos a brincar com um mar desenhado de giz de cera, um barquinho de dobraduras e água salgada espalhadas pela imaginação.

No delírio das horas infantis, sem preocupações ou receios, a cidade acendia a luz e um barco navegava iludido até os anéis de Saturno. Eu, até mesmo na versão criança, vivia à procura da lua. Velejava sem medo, com a estrela guia a derramar caminhos de água salgada a beira da tempestade. Planetas inteiros imersos na ilusão do vento a bailar com um veleiro feito de papel amassado e algumas palavras impressas em livros esquecidos.

A proa molhada, o timão girando e o sol inerte sem querer abraçar o dia, apenas gotas de chuva num universo cheio de estrelas insanas… em desvario.

Agora entendo por que sinto-me ligeiramente atraída pelas noites tempestuosas… essas em que os raios rasgam o céu e a chuva derrama músicas pelo telhado. Compreendo, ou apenas finjo compreender! São as minhas memórias infantis a resvalar histórias inventadas em tardes planetárias… alucinação, frenesi ou uma velha miragem daquele mar projetado numa bacia cheia de águas tingidas de azul.

Todas essas narrativas salgadas que moram em mim são formas em alto relevo. Ou simplesmente algumas gotas transformadas em mares de cristal e um espelho a refletir o céu em ondas. Um oceano inventado, um barco dobrado e palavras cantaroladas por alguém tão pequeno a imaginar finais incalculáveis.

Pequenos eus relatando mundos imaginários.
Levanto. Caminho até a janela das minhas memórias… as árvores que sombreiam o jardim, são companhias perfeitas, testemunhas de todos os devaneios inventados ao ar livre. Paro. Anoto detalhes. Presencio cenas. E, no rasgar do raio, mergulhada em pensamentos de minha infância, deixo a brisa acariciar o meu presente no abstrato do que um dia fui. Estou imersa na ilusão daquilo que me tornei.

As tempestades que acontecem fora do meu mundo são as mesmas que acalmam essa saudade a invadir minha derme. Barquinhos de papel jogados ao mar em noites de chuva seguem sua rota e chegam intactos ao seu destino. Temporais que habitam o meu delírio a imaginar lembranças agridoces.

Suzana Martins... Jornalista e designer por ofício. Escritora e fotógrafa por paixão e mera curiosidade lúdica. Participou da 1ª, 2ª e 3ª edição do projeto Diário das Estações e outras antologias. Autora do blog Minhas Marés e do zine poético Dias de Victória. É também a voz do podcast Espresso Poesia. Desde pequena, ama ouvir histórias, escrever e recitar versos. Acredita na arte como veículo de transformação interna e externa.

Barquinho de Papel | Barquinho

Quando se é criança,
a mente confabula histórias sem fim por lugares,
brinquedos e seres imaginários.


No faz de conta nada é absurdo.
As velas içadas da memória levam
o barquinho de papel por terras gélidas.


Eu e ele, cientistas em expedição pelo Lago Ness.
De suas profundezas emerge o monstro marinho.
No espelho d’água: carcaças à deriva ou descoberta, enfim, comprovada?

O final trágico ou não é mero detalhe.
Somos unha e carne. Temos rins que enfrentam
perigos titânicos… a vida é frágil.

Quando se é criança,
a invencibilidade toma conta da fantasia.
Viagens fantásticas em barcos de papel na bacia
no quintal enquanto a febre não baixa.

Ele, o pescador que enfrenta tempestade em alto mar.
Eu, a pequena sereia, canto para enfeitiçar. 
Apaixonados, vivemos felizes para sempre.

No cardápio da infância, falar abobrinhas é batata!
Os devaneios nos alimentam.
Somos unha e carne.
Temos um fígado insólito que regenera…
a vida é frágil.

Quando se é criança,
as coisas parecem ter uma dimensão descomunal.
Ele é um verdadeiro camaleão.
Sou um peixinho com vontade de voar.


Pegamos carona no barquinho de papel a deslizar, primeiro, pelas águas sem se enxarcar.
O rio celebra. Depois o barquinho ganha asas, apesar do tempo turbulento.


O céu abrilhanta.
A luz tem cheiro.
Manteiga derretida.
Um dilúvio se anuvia.
Somos unha e carne.
Temos um cérebro ciclópico… a vida é frágil.

Quando se é criança,
a fragilidade da vida é desmedida.
Ninguém se preocupa se o barquinho de papel
foi desfeito em segundos.


A imaginação corre solta ao sabor do vento e da correnteza.
O som tem cor.
Mamão com açúcar.


Nova dobradura é feita, agora com o amuleto da sorte.
Eu sou uma verdadeira marinheira, olhar atento, no barquinho que vai pelo fluxo da água.


Ele é um gigante, à frente,
mesmo cuidando dos obstáculos,
percebe o naufrágio.


Nem assim as lágrimas afogam nossos sonhos.
Somos unha e carne.
Temos um pulmão caleidoscópico… a vida é frágil.


Quando se é criança, a sensibilidade aflora de forma gigantesca.
O barquinho de papel agora é Nautilus,
mergulhamos a vinte mil léguas submarinas.

O sonar sonda os tesouros perdidos.
Ruma aos palácios colossais e jardins suspensos monumentais.
Estamos no fundo do mar.
Somos rei e rainha de Atlântida.
Mau presságio à vista? 
Deuses invejosos nos enterram no escuro abissal.


Somos unha e carne, então cavamos.
Temos um coração atlântico.
Seja ficção ou real, a vida é frágil invenção.

Rozana Gastaldi Cominal… Mulher que voa, é feita d-eus múltiplos que sustentam o corpo amoroso, político e periférico. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz. Dos espinhos ao néctar das pétalas aninhadas, nada lhe passa imperceptível. Alada, em voo invisível, colhe palavras e pólen em jardins suspensos de seu quintal ou da Babilônia. Franco-atiradora, arma-se do riso apesar da zanga que espreita.  Também os fins justificam os meios em estado de poesia.

Barquinho de papel  | Barquinhos…

Lembro-me do barulho dos meus pés pisando a areia fina que contornava o rio à poucos passos da casa e durante a noite.

Quando tudo se aquietava eu ficava ouvindo o barulho da água dançando com as margens. Era a hora que eu sonhava com o barco que me levaria até o mar? Em minha cabeça de menina uma pergunta martelava: será que se eu seguir esse rio, percorrendo as curvas eu chegaria até o mar? Parecendo adivinhar meus pensamentos, minha mãe me mandou sentar ao redor da mesa grande debaixo do pé de sete copas… revistas velhas, tesoura e foi dobrando uma folha de revista.

A ponta de cima até o centro do papel.
A ponta de baixo levantada.

Suas mãos foram dobrando aqui, forçando a dobra ali e no centro da mesa um barquinho pousou… A companhia dos meus irmãos encheu a mesa… e eu quis colocar meu barco no rio, para testar, colocando nele a esperança e a fantasia de sair vida afora até conhecer o mar. Mas, assim que o barquinho foi colocado no rio, a correnteza o carregou e poucos metros abaixo se desfez lentamente. Um outro, foi um pouco mais longe e sumiu debaixo da água. Mas um, feito com outro tipo de papel — mais duro — seguiu a curva e sumiu levado pela correnteza. Do alto de uma pedra consegui avistá-lo  até onde meus olhos conseguiram ver.

Minha mãe, vendo as nossas expectativas ali, com alguns barquinhos ainda em mãos, disse que os sonhos eram iguais aos barquinhos. Uns, eram muito frágeis e no primeiro obstáculo se desmanchavam. Outros, duravam algum tempo, mas diante de algumas dificuldades, eram desfeitos — talvez para dar lugar a outros sonhos — e só o sonho baseado em um sentimento forte, seria realizado. Não importa o tempo, nem as dificuldades… de uma forma ou de outra, o barco encontra um porto seguro onde atracar. Eu ainda não conheci o mar. E o meu barco de papel que estava guardado, se perdeu nas mudanças da vida.

Quando o meu filho completou 11 anos… o ensinei a dobrar o papel para confeccionar o seu barquinho de papel. Repeti as mesmas frases que minha mãe me disse. Falei dos sonhos, da importância de tê-los e das dificuldades que poderiam surgir quando buscamos esse sonho. O tempo passou, e um dia, seguindo o seu sonho, meu filho me ligou à beira do mar. Ouvi o barulho das ondas, o som do vento e o eco dos passos dele na areia… sua voz sendo parte do mar que toda vida sonhei ouvir:

— Mãe, o barquinho enfrentou a onda e está lá, no meio do mar. Os sonhos se realizam, mãe.

Não era eu ali, mas eu compreendi o que minha mãe quis dizer: muitas vezes, os nossos sonhos se realizam nos nossos filhos.

Mariana Gouveia... pessoa adoradora de lua, borboletas e joaninhas. É dona de um beija-flor chamado Chiquinho que em algumas noites dorme em suas mãos. É a humana de Lolla e Yoshi, os cães que domaram seu coração para além dos voos. Sonha com os pés no chão. É marítima sem nunca ter conhecido o mar. É de rio e de terra. Do ar e do vento…Tem horas que pensa que é apenas uma, mas acontece que dentro dela moram várias… 

Barquinho de Papel | Origami

Escolhi a varanda após a leitura de um poema que foi enviado por um poeta… um ilustre desconhecido da realidade literária. Ele queria a minha opinião a respeito de suas linhas-primeiras — coisa bastante comum por aqui… O domador de palavras, como se define, teceu um diálogo com o papel que ao ser dobrado converte-se em barquinho de papel. 

Lido, o poema não causou impacto algum em minha anatomia… Às vezes, acontece. O verso atravessa a minha epiderme e vai embora, sem deixar rastros. O abandonei na tela — condição de barco a deriva em alto mar — a se afastar dos meus olhos… Com a promessa de retorno… a qualquer momento.

Preparei uma xícara de chá e na condição de marinheiro… me pus a navegar pelos cômodos da casa.  Quando dei por mim, estava a repetir o movimento das mãos… dando nova forma ao papel. Dobrando uma-duas-três-quatro vezes, criando vincos com as unhas… Do quadrado inicial para um triângulo maior-menor… E de dobra em dobra, eis que acontece um barquinho…

A primeira vez que pratiquei a dobradura foi em sala de aula — a mais colorida da escola, com obras de arte mirins penduradas em um varal — desenhos feito à lápis e algumas pinturas com guache — que se misturavam a réplicas de grandes artistas.

— Todos somos artistas! — disse a professora, me fazendo bufar ao ter certeza de que naquela turma de vinte e duas criaturas insones, havia apenas arteiros… 

A tal sala temática era uma invenção de Eva, a nossa professora de Educação Artística que, acreditava estar  perto de encontrar um novo talento para lapidar e apresenta-lo ao mundo — era um sonho convertido em projeto de vida… Com ela, aprendi as cores primárias, secundárias, terciárias e suas respectivas misturas. Fiz um desenho com nanquim e preenchi um caderno inteiro com desenhos horríveis… Não era a minha aula preferida e a professora não me conquistava com suas teorias de espaço, cores, fôrmas e formas. Por razões obvias, eu não era a personagem que ela tanto procurava.


Mas, foi em uma de suas aulas — tínhamos duas por semana — que conhecemos Akemi… uma artista oriental,  radicada em nossa cidade. Ela se parecia com um daqueles enfeites de porcelana, no qual esbarramos — descuidados — e quebramos. Por ter curiosidade a respeito da cultura oriental, me interessei. Alguns de seus trabalhos atraíram a minha atenção. Ela desenhava letras orientais em um papel diferente, específico para a sua arte: arroz e os seus traços eram de uma delicadeza impressionante.

Akemi pouco falou a respeito do papel que usava, confeccionado a partir das longas fibras de arroz branco, resistente e de cor branca, quase translúcida e textura áspera para falar a respeito de uma técnica milenar: o origami. 

Meu interesse minguou…
Akemi ensinava os segredos do papel e a magia das mãos — explicando o sentido da palavra: origami quer dizer ori (dobrar) kami (papel).

Arte popular oriunda do Japão que consiste em dobrar o papel sem cortar até obter uma forma específica. Mencionou Akira Yoshizawa o criador da idéia da dobragem criativa — Sasaku Origami — e inventor de um conjunto de métodos que permite  dobrar uma série de animais e pássaros.

Akemi dobrava o papel com facilidade. Todos os seus movimentos eram delicados e lentos. Ao vê-la, pensei em meu livro, deixado aberto, em cima da minha mesa de meu quarto, de frente para o mundo-mar-cidade e os muitos telhados vermelhos.

Cresci acreditando que poderia saltar muros, escalar telhados e chegar até a parte mais baixa da cidade, inspirada no filme Mary Poppins. Eu vivia resmungando a canção chim-chim-cher-ee por aí…. Por sorte, a criança que eu fui, apenas imaginou essa possibilidade sem nunca tentar tal coisa. Era parte de um sonho-infantil e eu adormeci inúmeras vezes no telhado. Pela manhã, despertava — na cama — em dúvidas entre sonho ou realidade. Passado o susto de não me encontrar na cama e me procurar pela casa inteira… até me localizarem no telhado, mio babo providenciou uma escada de fácil acesso para chegar até lá, ao invés de me proibir de sair pela janela, usando todo o discurso a respeito do perigo que eu corria ao escalar a parede. Era ele quem me devolvida para a cama no meio da madrugada. E foi das mãos dele que recebi uma luneta para explorar distâncias… E não era um modelo qualquer — era uma luneta-pirata…

Regressei de meus delírios — lugar para onde vou com frequência e facilidade — quando a professora colocou um origami em minha mesa. Era um Tsuru — ave sagrada do Japão, símbolo da saúde, felicidade, longevidade e da fortuna, que em terras nipônicas é conhecido como orizuru. É um dos origami mais tradicionais da cultura japonesa.

— Inicialmente — disse Akemi — o tsuru tinha função decorativa. Era usado para enfeitar os quartos das crianças, distraindo-as da realidade, conduzindo-as ao mundo dos sonhos. Mais tarde, foi associado às orações e passou a ser oferecido nos templos, acompanhado de pedidos de proteção. E existe uma lenda muito famosa em meu país que, diz que se dobrarmos mil tsurus, os deuses realizarão o nosso mais profundo desejo.

A Lenda dos Mil Tsurus se tornou conhecida através da história de Sadako Sasaki, uma menina que foi exposta à radiação da bomba atômica, que atingiu a cidade de Hiroshima. Sadako desenvolveu leucemia e passou sua infância sendo tratada no Hospital da Cruz Vermelha, onde conheceu a lenda do Senbazuru e decidiu que iria dobrar os mil tsurus e ter seu desejo realizado. Apesar de sua determinação, a menina faleceu antes de completar sua missão. A história se espalhou ao vento. As crianças da cidade se reuniram e finalizaram a tarefa por Sadako. Virou lenda… E todo ano, assim como florescem as cerejeiras num lindo espetáculo… as árvores da cidade amanhecem coloridas por tsurus feitos pelas crianças que ouvem histórias a respeito da importância de se acreditar nos sonhos.

Depois de zanzar por toda a sala, enquanto tagarelava lendas, com seus passos de gueixa, Akemi parou ao lado da minha mesa… e pousou ali o tsuru por ela confeccionado, avisando-me: toda vez que se ganha um tsuru, devemos retribuir. Eu exibi um sorriso amarelo-pálido-sem-graça e quase inventei uma lenda própria para me livrar da manobra da artista oriental… Dobrei o meu tsuru com toda a dificuldade do mundo. As outras crianças se saíram melhores que eu, em suas tarefas.

Eu era melhor na arte de virar páginas…

Ao final da aula, ganhamos um kit dobradura. Em meu quarto, escolhi o quadrado azul e de dobra em dobra, finalmente aconteceu um barquinho, deixado em cima do livro do momento: 20 mil léguas submarinas, de Jules Verne…

Lunna Guedes... sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecia o outono em qualquer hemisfério e escreve por escrever somente, às vezes na própria pele ou nas paredes do corpo, por dentro… Gosta de caminhar e contar os passos e de ser perder de si e do mundo alheio… às vezes, atende por Catarina!

Barquinho de Papel  | Barquinhos de Papel

Barquinhos de papel são tão simbólicos, toda prô do jardim de infância já passou essa atividade como dever de casa: dobradura de barquinho de papel. Eu quase consigo me lembrar de uma musiquinha do barquinho ligeiro ou barquinho azul. O mais legal era ter que chupar um picolé para usar o palito — porque meu barco tinha que ter as velas.

Pensando em todo sentimento que essa dobradura nostálgica me traz, acho que devo falar das aventuras vividas por mim, por Maria Valentins — minha avó paterna e Dezinho, avô paterno.

Há dois tipos de pessoas no mundo — Maria dizia: as sonhadoras e as chatas.

Tenho para mim que cresci com isso, afinal eu escolhi não ser chata! Essa fala sempre me soou tão reconfortante. Meus pais saiam para trabalhar e eu ficava com eles, meus primos também, mas como neta mais nova e favorita, tínhamos mais contato. Essa continua sendo minha interpretação.

Eu comprava cigarros para vó escondido na vendinha do Ciço e como recompensa ficava com o troco, sim, porque sempre tinha. Eu só não sei como ela fumava igual a uma caipora e escondido do meu vô, mas aquilo não era problema meu — ao menos até antes de sua partida antecipada. Câncer de pulmão.

Eu, sinceramente não sentia culpa mas, também não entendia direito o porquê de, num piscar de olhos, estar na casa da minha madrinha, com todos os meus primos. Uma correria e cochichos dos adultos; ao menos nos davam comida.

E de repente estávamos na capela Santa Luzia, era Maria ali naquela caixa. Demorou para eu assimilar aquela cena ou chorar. Não havia qualquer tipo de diálogo da parte de minha mãe ou meu pai. Talvez essa seja uma questão a se trabalhar na terapia… é a primeira vez que falo disso.

Penso que os anos 90 foi um delírio coletivo — nunca na vestimenta — mas nos valores. De qualquer forma, ter sido criança nessa época foi muito divertido.

Então tudo ficou estranho, não tinha mais as competições de barquinho de papel no tanque de concreto, vô Dezinho passou a usar uma máscara feia, ranzinza no rosto. Não o reconhecia. Um dia entrei escondida em sua casa e me deparei com toda sua coleção de botões no lixo, não dava para acreditar. A verdade é que eu fui vendo meu avô definhando dia após dia, não sei se por amor ou remorso. Talvez os dois.

Fui forçada a arrumar outros hobbies, comecei a escrever e só aquilo me importava, tanto que minhas coleções de cartões telefônicos e papéis de carta ficaram de lado. Não que seja tão relevante, se bem que estou me contradizendo, comecei a ler sozinha aos 6 anos de idade, sempre fui muito curiosa.

Nunca vou esquecer a emoção: F/I/CH/A numa lista telefônica. Aos 8 anos eu lia Shakespeare e treinava meu próprio monólogo. Poderia listar agora todos os meus feitos de criança prodígio — que hoje luta para acreditar ser uma escritora, boa.

Acredite em mim quando digo que minhas aventuras com barquinhos de papel foram totalmente relevantes para o ser humano que sou hoje.

Não havia galochas ou capa de chuva, nem um córrego que dava num bueiro sinistro. Vô Dezinho faleceu há alguns anos, ele repetia todos os dias: amanhã é minha vez.

Penso que tamanha era sua vontade do reencontro, que durou tanto tempo para tal. Sua casa está fechada, sobraram poucas coisas daquela época. O tanque de concreto permanece intacto, embaixo dele a bacia que usávamos para as competições.

O barquinho nunca afundou nas minhas memórias.

Lua Souza… A autora que vos fala é uma filha de Letras. Gosta do som dançante do encontro entre vogais e consoantes, gosta dos radicais. Gosta de uma cartase, é a própria epifania materializada. Gosta das formas e imagens. Gosta de tomar um porre- de palavras. Também gosta de  observar as pessoas nos trens, parques e escrever sobre elas. Gosta do jeito que a cidade olha para ela. Gosta de sorrisos, aqueles com todos os dentes. Gosta de pequenas coisinhas que a salvam do caos: música é uma delas. Gosta de bandas de rock e poetas modernistas, gosta das referências, gosta que as coisas façam sentindo no mundo dela- da Lua. Gosta do nome Clarice, gosta da Maria Ribeiro e da Viviane Mosé.

Gosta de ser metódica, quase demodê. Gosta do barulho de máquina de escrever. Gosta de rimar.
Gosta da palavra gostar.

Nas nuvens | Altitude

Fizemos um porta-retrato de papel verde, um chapéu de dois bicos, um barquinho.

Os alunos levaram sua produção para casa. Muitos experimentaram o desempenho em uma bacia com água, no dia seguinte estavam empolgados!

Não me foi permitido o teste. Em casa era proibido brincar com água. Mexer n’água era uma arte severamente punida. O risco era de se molhar e, nesse caso, pegarmos uma gripe. Desgraça muito temida!

Lembrei-me disso quando, estudante, visitei um jardim público na capital francesa, o do Luxemburgo, em frente ao prédio do Senado. Em meio às árvores, gramados, canteiros de flores, chafarizes e esculturas, havia um belo laguinho octogonal. Lá — manda a tradição —, desde a primavera, quando o tempo permite, as crianças soltam barquinhos a vela, que esperam chegar do outro lado. Cada vez que vejo a cena, meu coração bate mais forte. Ainda habita em mim uma criança travessa, que deseja tudo experimentar. Já consegui empinar papagaio, uma atividade que não era coisa de menina. Curioso, carrinhos e aeromodelismo nunca me interessaram.

Mas, com muita certeza, eu hei de conseguir um barquinho para soltá-lo no laguinho do Luxemburgo!

Isabel Rupaud — cansada de trabalhar textos dos outros, traduzindo documentos técnicos e jurídicos por mais de 40 anos, meteu-se a escrever tardiamente. Ao mesmo tempo ousada e prudente, acha que o mundo é divertido e os obstáculos e dificuldades constituem desafios. O pé que tem na França, onde morou por quatro anos, inicialmente como estudante de Linguística e depois casada, tem muito peso em sua personalidade.

Barquinho de Papel  | Marcha Soldado

Alheios à problemática da escassez de água, mudanças climáticas, assalto ao Aquífero Guarani, em criança, detestávamos a chuva que desabava em nossos feriados adiando brincadeiras ao ar livre.

Com desenhos do sol na lajota, danças indígenas para afastar o mau tempo, e demais simpatias torcíamos pela volta do céu azul, enquanto, da janela, víamos gotas pesadas descumprirem nosso trato, com quem quer que fosse o responsável por deixar a torneira aberta.

Num dia especialmente frio e chuvoso de julho minha mãe apareceu com papéis, canetinhas e a notícia: vamos fazer barquinhos de papel!

Dos retângulos nasceram o chapéu do soldado, com marchinha “cabeça de papel“ e dança pela sala; deles, o primeiro, o segundo, toda nossa frota, pronta para ser customizada com estrelas e coraçõezinhos, além de tripulantes palitinhos prontos para serem lançados ao mar.

Saímos à rua: com botas plásticas, capa e gritinhos, rumo ao caudaloso fluxo que contornava a calçada. A luta dos nossos barquinhos era para cruzar o Cabo Horn sem sucumbir às ondas e ilhotas de sujeira que bloqueavam sua jornada.

A chuva hoje cai; trazendo ora alívio, ora tormento com inundações e desmoronamentos. Nosso esforço diário é para ver, além da sarjeta, barquinhos coloridos rumando ao infinito… nossa felicidade também colaborando para o entupimento das bocas de lobo.

Adriana Aneli…