Cartas para Abril

Oi, Ana

Começo a te re-escrever na madrugada. Sinto que o vento traz o cheiro de café de algum vizinho madrugador. Coloco a água para aquecer em um ritual antigo — já que fiz a burrada de, em um momento de distração, jogar o suporte da cápsula da cafeteira fora — enquanto preparo o coador para então saborear o café a me acordar de vez.

Enquanto sigo até o ponto de ônibus, vou criando notas mentais do que gostaria de te dizer. Quase crio uma canção ao repetir as palavras para não esquecer.

Continuo na segunda parada… onde aguardo pelo outro ônibus e mais uma vez o cheiro do café chama a atenção. O vendedor de bolos de arroz me serve com a delicadeza de todo dia. O sabor do bolo típico daqui me leva à infância. Minha mãe usava a latinha de sardinha como fôrma para assar no fogo de barro. Enquanto o ônibus não chega, falamos do momento atual na política e ele logo discorre sobre o filho que tentou um concurso público.

Penso que hoje completo uma carta que comecei a escrever ainda adolescente, quando você chegou a minha mão, através de um exemplar sem capa… de Inéditos e Dispersos que continha correspondências e poemas. Eu saindo da infância e todas as melancolias do mundo dentro de mim. O livro parecia ter sido manuseado sem cuidados e apesar de fino, tinha folhas soltas. Comi as palavras e a palavra correspondência ganhou sentido em minha vida.

Minha mãe usou a palavra “poeta impetuosa” para te descrever. Parei entre a soleira da porta que dava para a cozinha e comecei a escrever essa carta, que ficou parada no tempo. Talvez eu clamasse pela liberdade que você esbravejava e eu invejava nas palavras. Ou talvez simplesmente vivesse essa mesma inquietação tua e que só exercesse minha versão transgressora longe de minha mãe.

O dia chega ao fim. Sinto que não consegui dizer tudo. Hoje, as lembranças pesaram junto à realidade. Embora um sol brilhante do lado poente desenhe nuvens no céu, no ponto leste de minha janela um arco-íris redesenha coragem em mim. Há situações de chuva no céu e os trovões bradam o interior e é dentro de mim que te abraço.

Beijo,

Mariana Gouveia… é autora de o lado de dentro… dos romances Corredores e Portas abertas e dos diários Cadeados abertos e Desvios para atravessar quintais…

Nasci numa fazenda no interior de Goiás, das mãos de uma parteira que se chamava Florinda, mas que todo mundo a conheciam por dona Fulô, no primeiro dia de julho de 1.965. Era inverno, mas parecia primavera…  leia mais

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