My dear,
Faz sol entre esquinas. O latte acabou e a leitura que era feita entre goles, agora vai a seco. Leio-te novamente e recordo coisas nossas-suas-minhas. A nostalgia-gavetas… coisas tão minhas-suas. Causa de espanto-soluço. Uma soma improvável.
Guardei algumas coisas do passado recente. O mais antigo… fiz questão de estragar — amassei-rasguei-queimei. No tempo em que a raiva fervia em meu íntimo. Brasa acesa. Fúria crescente. Uma tempestade a causar estragos por onde passa…
É estranho recordar essa outra pessoa que fui… faz tanto tempo. É como abrir uma dessas gavetas e revirá-la. Foi ela quem lhe escreveu ao saber-te através de outra poeta, a que apresentou a poesia à menina que eu fui. Nossa! Eu já fui tantas! — estou velha, minha cara. Já dei algumas voltas ao redor do mundo, sem mapas-destinos-lugar. Guardei alguns pores do sol na memória e o resto descartei. Hoje estou com os pés bem fincados nesta cidade urbana que eu gosto de dizer de Mário, apenas para não dizê-la minha. Não ria…
Encontrei uma das cartas que lhe escrevi… não sei como sobreviveu. Estava no meio de outras tantas que escrevi e não enviei. Eu escrevo para o papel, ainda que tatue um nome nele. Não indica norte-destino-coisa-alguma.
Gosto imenso do ato de escrever… me faz lembrar das viagens de Comboio de ontem. A plataforma de Nervi. Os humanos em estado de partida-chegada. O tempo de espera. O velho relógio no alto a contar os segundos-minutos… ignorados por mim. O apito agudo do trem. O embarque. Eu era sempre a última a embarcar… ficava a observar os movimentos até cessarem. O chefe do comboio sorria e apontava a porta depois do segundo apito… o melhor dos rituais. Ele apitava e a locomotiva respondia.
Dentro do envelope que leva o seu nome, encontrei o bilhete-verde de meu último embarque. Virou marcador das páginas do teu livro — lido incontáveis vezes, esquecido outras tantas no fundo da gaveta-prateleira-caixa-alma e, que hoje voltou a aquecer minhas mãos, com suas dúvidas-certezas-medos-silêncios.
Acho que deveria lhe enviar um postal… com a cara da cidade empalhada — para marcar o momento de hoje: este dois mil e qualquer coisa, outono, dia de sol e uma libélula a bater contra o vidro, como se quisesse entrar e participar da nossa conversa.
Au revoir
Lunna Guedes... é autora da trilogia Lua de Papel, dos romances Vermelho por dentro e Alice e dos diários Septum e Aos sábados, do não-livro Meus naufrágios e Profissão: escritora…
É sagitariana. degustadora de cafés. uma flecha em voo rasante. colecionadora de silêncios e apreciadora de espaços urbanos. não gosta de fazer compras. detesta dias de sol. ama dias de chuva. aprecio o outono em qualquer hemisfério. leia mais