a mulher na literatura
Devo escrever sobre uma ciranda. Ou estar nela? Dançar conforme a música da vida ou seguir ao embalo da própria? Sigo a intuição e a intenção, com integridade e intensidade…
Devo escrever sobre essa grande ciranda de mulheres que escrevem… E que lêem. E que se lêem. Deus nos dê, enfim, a liberdade da mulher livre no livro! Dançando a ciranda da palavra dita, sentida, vivida até a última gota do seu suor, do seu sangue, da sua lágrima, do seu ventre lago quente de vidas…
Clarissa Pinkola Estés, autora do célebre ‘Mulheres que correm com os lobos’, também escreveu, em 2007, ‘A ciranda das mulheres sábias’, no qual trata acerca do feminino e da maturidade, da velhice e da sabedoria da velhice feminina. Penso que aqui — nesse breve relato — minha ‘ciranda’ será mais específica. Quero falar da ‘sobriedade’ (moderação, temperança, equilíbrio) do ato de escrever — no mais improvável sentido do termo — é que fui incumbida de tratar, em breve ciranda de linhas, sobre a mulher na literatura, através de um olhar específico de quem escreve (ainda que inéditos sejam meus escritos no meio literário oficial) e/ou lê. Devo de antemão esclarecer — sóbrio é o indivíduo que está consciente, firme na concepção de seus atos e pensamentos… Não, mas não quero pensar na mulher como simples sujeito de atos controlados, disciplinados, contidos, restritos. Não. Que sejam também muito bem-vindas todas as loucuras que nos avizinham! Porque:
Lugar de mulher
é na asinha
livre leve solta
concentrada ou absorta.
Modo de usar:
asas à indignação.(*)
Sendo assim, lugar melhor não há para a mulher: a literatura feminina exige passagem! Clarice Lispector muito bem sabia disso, e disse: “Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado”.
Mulheres sempre escreveram. Arrisco dizer que escreveram primeiro do que os homens, embora lhes tenha sido negado o aprendizado da escrita/leitura por longo tempo… Mas mulheres escrevem desde o princípio (é bom lembrar que já ‘no princípio era verbo!’) — afinal, dar à luz não é escrever (inscrever) no mundo a vida — o verbo? Parir um filho, parir um livro, para o seio(anseio) do mundo…
Milhares de mulheres escrevem. Milhões de mulheres lêem. É preciso resistir. E prosseguir… Enquanto isso, uma pergunta central ainda lateja em minhas veias: como sinto, consumo, absorvo a literatura escrita por mulheres? Penso que meu olhar seja mais vasto enquanto leitora… Outrora disse Kafka que “um livro deve ser um machado para quebrar o mar congelado dentro de nós” (citado por Estés, in: Libertem a mulher forte, Rocco, 2011, p. 7). Devo então quebrar meus gelos internos, fazendo-me derreter na emoção do verbo, quando este machado (de letras) atinge-me, ao lento da brisa, ou mesmo de súbito, no hemorrágico do verbo, bem fundo, o meu ‘sótão interno’ (sorrateiro) de treinar equilíbrios… Assim está feita a missão do livro… Talvez ainda me atreva a outra vez repetir Clarice: “Minha vida me quer escritor e então escrevo. Não é por escolha: é íntima ordem de comando” (de “Um sopro de vida”, in: As Palavras, Curadoria Roberto Corrêa dos Santos, Rocco, 2013, pg. 13). Então está combinado, entre mim — aquela que lê — e aquela de mim que também ousa escrever — o ato de absorver leituras escritas por mulheres.
Escrevo (e leio) como mulher. Escrevo porque minha garganta não suporta palavras à beira de serem ditas. Escrevo porque em mim já não cabem incertezas da vida, incontáveis descompassos, instrumentos de medição de nós mesmos no mundo. Escrevo porque me atrevo, me arrisco, me modifico. Entre um dia e outro, sou um sussurro, um suspiro, um ponto de interrogação. Escrevo porque sou rascunho, obra não terminada, predestinada ao final do capítulo. Escrevo porque nascem palavras deixadas à margem do precipício do mundo, não ditas, desditas, no céu da minha boca, no véu da minha vida. Escrevo porque vivo. Estou viva porque escrevo. Por tudo isso leio. Releio. Decoro. Mulheres, homens, mulheres. Afinal, “seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta/com quem alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?” — Fernando Pessoa, Obra poética, Nova Aguilar, 2001, p. 394.
Como se dá, portanto, meu olhar sobre essa realidade, nessa tão vasta ciranda das mulheres ‘sóbrias’ e loucas e sábias e vestidas da vastidão de mundo? Muito além da margem, da imagem ou da imaginação:
Mulher de Vênus
teu lugar pleno
no mundo
no fundo
na superfície
na borda
no centro
ao redor
transborda
comporta
conspira
transpira
respira
inspira.
Mulher Afrodite
acredite
melhor
inteira
completa
repleta
partida
desfeita
refeita
vestida
desnuda
alheia
anseia
Mulher Maria
Joana
Madalena
Geni
teu lugar é aqui:
legar
negar
rasgar
entregar
existir
resistir
parir
partir
largar
Alargar
liberdade
na verdade
igualdade
na cama
na calma
na alma
na vida
no caminho
no destino
destemido.
Mulher
sem medos
sem modos
sem metades
sem contornos
sem retornos
sem condutas
sem culpas
sem limites
sem juras
sem juros
sem muros
sem insultos
parindo
desejos infinitos
cara ou coroa
depois da margem
Nic Cardeal — na grafia da vida que se fez minha, não sei dizer ao certo a que fim eu vim. Só sei que vim. Nascida depois de um ovo partir-se ao meio, cheguei ao planeta em parceria. Talvez por medo de descer por aqui sozinha. Andei por lugares diversos, contei estrelas, juntei pedrinhas (e livros) pelos caminhos. Sou desajeitada. Calada. Quase esquisita. Minha voz tem som de silêncios. Enquanto não consigo dizer-me muito, faço de conta que me faço em palavras. Por isso escrevo. Meu manual de sobrevivência.